The Beatles: Get Back

 Um Novo Olhar

O longa-metragem Let It Be (Reino Unido, 1970), a bem da verdade, fora estruturado/montado para funcionar como instrumento de divulgação das então inéditas canções dos Beatles também lançadas em álbum homônimo. O material audiovisual foi editado tal qual um extenso videoclipe entrecortado por breves cenas de bastidores que, por sua vez, aglutinam aquilo que de mais fascinante o filme possui – apesar de suas imperfeições e limitações – qual seja a exposição da deterioração da relação entre alguns integrantes do grupo, a insatisfação de George Harrison perante um incansável e workaholic Paul McCartney, o desdém de John Lennon perante os planos profissionais existentes para o quarteto¹ e a tranquilidade de Ringo Starr que entre tantos choques de egos assumia com bom humor seu lugar na escala hierárquica da banda.

Assim, a despeito das rígidas orientações do à época empresário dos fab four Allen Klein quando da pós-produção do filme Let It Be acerca do que deveria ser focado com exclusividade pelo mesmo, leia-se as figuras dos quatro músicos²-³, o cineasta Michael Lindsay-Hogg ousou, dentro de tal regra, apimentar o material para o desconforto dos músicos, consoante expõe Kim Aitken:

“Writer and diretor Sir Michael Lindsay-Hogg recalled that the rough cut was about na hour longer than the released version: ‘Therer was Much more stuff of John and Yoko, and the Other three did’nt really think that was appropriate because They wanted to make it a ‘nicer’ movie. They didn’t want to have a lot of the dirty laundry, so a loto f it was cut down.’

Lennon said of the final film, ‘the câmera work was set up to show Paul and not to show anybody else... the people that cut it, cut it as ‘Paul is God’ and we’re just lyin aorund...’” ⁴.

Eis que a série The Beatles: Get Back ao recuperar e condensar 60 horas de filmagens contempla tudo o que está contido em Let It Be e vai muito além do que um mero produto de divulgação de material e de constrangimento de artistas, ao passo que:

a) apresenta não só o produto final de cada canção como também, e principalmente, o processo de criação delas, o que representa um deleite para qualquer amante da boa música que, desse modo, tem a sensação de testemunhar em tempo real pequenos milagres se desenvolverem perante seus olhos;

b) aprofunda-se mais na questão do desentendimento entre os artistas, eis que retrata a saída de George Harrison da banda por alguns dias, algo que Let It Be sequer menciona;

c) aborda o desconforto que a presença frequente de Yoko Ono causava, ainda que tome o cuidado de não vilanizar a mesma, contexto no qual chama a atenção a ponderação de Paul McCartney que em certa passagem afirma ser inútil espernear contra tal circunstância, afinal, em sendo tamanho o desejo de Lennon ter a amada sempre ao lado só cabia aos demais respeitar tal fato;

d) por fim, Get Back dispõe de uma revelação surpreendente que provavelmente estimulará a reescrita de muitas biografias: a enorme camaradagem que, mesmo em meio a tantas brigas, ainda se fazia presente entre os músicos quando tocavam, no que ganha destaque o comportamento brincalhão de John Lennon que, desta feita, tem desconstruído, para o bem, parte da aura rebelde, contestadora e crítica existente em torno dele.

Nesta toada, o diretor Peter Jackson acerta em cheio na construção da série ao não apontar vilões e deixar para o público toda e qualquer interpretação nesse sentido a partir das informações fornecidas que contextualizam a conduta de cada um. Assim, George tem seus motivos para implicar com a ideia de voltar a fazer shows com a banda - dadas as não prazerosas últimas experiências do tipo -, Paul tem sua insistência em manter os amigos reunidos e trabalhando mais do que justificada, pois sem sua insistência nada do que está em comento teria ocorrido e John, repita-se, tem sua preferência por Yoko esclarecida pelo amor e abrandada pela animação. Nem mesmo a desastrosa figura de Allen Klein, então prestes a ser contratado para empresariar o conjunto, é demonizada, até porque tudo o que ocorrera de ruim após o encerramento das gravações de Let It Be deixa de ser citado pela série⁶.

Interessa para Peter Jackson trabalhar sobre o recorte referente as imagens recuperadas da feitura das gravações de Let It Be – o que não é pouco – daí, por exemplo, o cineasta passar longe daquilo escrito por muitos biógrafos: não bastasse as desavenças com Paul, George também andava deveras insatisfeito com John a ponto de, há quem diga, (I) ter partido para as vias de fato com esse⁷, (II) bem como ter reclamado fervorosamente - quando da reunião proposta pelos outros integrantes no intuito de demovê-lo da decisão de abandonar o grupo - da presença constante de Yoko Ono que inclusive em tal ocasião chegou a falar em nome do companheiro, para a fúria de Harrison⁸. Tal circunstância não é abordada por Jackson seja porque inexistem imagens do encontro seja porque não almeja o mesmo, como dito, tornar Ono uma responsável pelo fim do sonho já que essa seria uma conclusão deveras simplória para um trabalho audacioso e exitoso em sua meta: lançar um novo olhar e diferentes conclusões sobre os Beatles e sua obra ainda que meio século depois, potencial de revisão de descobertas esse que, há de se convir, somente obras-primas possuem.  

Não à toa, a realização de Peter Jackson supera a de Michael Lindsay-Hogg porque não restrita as amarras e ordens empresariais e também porque mais atenta a pequenos grandes momentos que não poderiam jamais ficar de fora de um corte final dada a capacidade de aumentarem a peculiaridade e carisma dos personagens - salvando-os das percepções unitárias estimuladas por  Let It Be - o que é exemplificado por Paul McCartney que além de ser mostrado como o colega mandão e persistente também era o garoto empenhado em desafiar as autoridades e o conservadorismo inglês, ainda que sem o modus operandi espalhafatoso de John Lennon, daí ser impagável o momento em que percebe a concretização de um plano seu quando tocando no telhado dos estúdios Apple vê policiais ali surgirem para interromper a apresentação. Seu sorriso, sua dança e a malícia com que canta “get back to where you once belonged” ficam na memória para todo o sempre.

Se algum beatlemaníaco porventura julgava que tudo já sabia, tinha lido e visto sobre os quatro rapazes de Liverpool resta agradecer a Peter Jackson por mostrar o quão errado estava. Obrigado.

___________

1. A tal respeito Kim Aitken escreve: “Of the album, Lennon told Rolling Stone magazine, ‘We couldn’t get into it. It was justa dreadful feeling at Twickenham Studios. You couldn’t make music at eight in the morning, in a strange place with people filmimg you, anda colored lights... I was stoned all the time and I jus didn’t givea s***.’” (The Beatles: All you ever wanted to know about the fab four. Igloo Books, 2016. P. 222.

2. Conforme explica Jonathan Gould: “Ao final de 1969, Michael Lindsay-Hogg havia concluído a pós-produção do filme dos Beatles. A versão final foi moldada pela orientação de Allen Klein de que o filme se focasse exclusivamente nos quatro, de modo que o diretor teve de descartar quase todos os diálogos e interações da banda com amigos e equipe (Can’t Buy Me Love: os Beatles, a Grã-Bretanha e os estados Unidos. São Paulo: Larousse do Brasil, 2009. p. 692).

3. Neste sentido, algo inédito até então, qual seja a participação de um músico extra em um disco dos Beatles (o tecladista Billy Preston) é mostrada sem qualquer contextualização. A explicação para tal aparição: como pretendiam gravar as músicas a partir de execuções ao vivo no estúdio, não seria possível que alguém ficasse responsável por mais de um instrumento; logo, para as ocasiões em que se fazia necessário o som de um órgão contou-se com a colaboração do outro músico.

4. Op. Cit. p. 170.

5. Neste diapasão conclui Ricardo de Querol: Na verdade, nem Let it be é tão sombrio, nem Get back é tão festivo. Nas duas produções vemos luzes e sombras. O que ocorre é que Get back se detém detalhadamente em episódios que foram omitidos ou só aparecem de relance no filme de 1970. Esta nova versão daquele material era necessária porque, na época, não se achou oportuno aproveitá-lo com esta ambição. Foram os próprios Beatles que evitaram uma distribuição mais ampla do filme Let it be, porque não ficaram satisfeitos com a imagem que passava deles. Ganharam um Oscar (melhor trilha sonora), que não foram receber” (‘Get back’, o documentário de Peter Jackson sobre os Beatles, é um acontecimento. Disponível em https://brasil.elpais.com/cultura/2021-11-25/get-back-o-documentario-de-peter-jackson-sobre-os-beatles-e-um-acontecimento.html. Acesso em 23.12.2021).

6. No que se inclui o polêmico processo de mixagem das músicas capitaneado por Phil Spector, a mando do empresário Allen Klein e à revelia das preferências dos compositores.

7.Outra vez Kim Aitken comenta: “Apparently, there was aneven mnore heated argument between Harrison and Lennon, which is not shown in film [Lei It Be]. Harrison, tired of Lennon’s lack of enthusiasm and creative difficulties, rowed with him. According to some reportes, They exchanged punches, although harrison said in na interview with Tjhe Daily Express Newspaper, ‘There was no punch-up. We just fell out.’” (Op. Cit. p. 225).

8.Novamente Jonathan Gould pontua: “Os Beatles se encontraram no final de semana na nova casa de Ringo em Surrey, onde as tensões continuaram a aumentar. George se opôs abertamente à presença e participação constantes de Yoko nos assuntos do grupo, John se recusou a se manifestar, Yoko se permitiu falar por ele e George, mais uma vez, saiu bufando” (op. Cit. p. 624).

 

FICHA TÉCNICA 

Direção: Peter Jackson

Estreia: 25.11.2021.

Comentários

LEIA TAMBÉM