Marighella

 Carente de Ambuiguidades

Ao eleger como projeto de estreia na cadeira de diretor a adaptação de uma biografia sobre Carlos Marighella o agora cineasta Wagner Moura foi sem dúvida corajoso, haja vista o incômodo que significa falar de alguém que tanto divide opiniões em um tempo no qual o militarismo é exaltado a ponto de ensejar reverências a tortura. Lamentavelmente o que sobra de coragem em Marighella (Brasil, 2019) quanto ao tema abordado falta de confiança quanto ao público, isso porque o cineasta não raro peca pelo didatismo seja para deixar claro o ponto de vista dos personagens seja para chamar atenção ao teor crítico da obra.

Desta feita, o roteiro traz diálogos ora teatrais aos quais se somam uma mise-en-scène marcada pela mão pesada de Moura que ao invés de explorar as dubiedades do guerrilheiro prefere investir num esquema de arquétipos cindido entre mocinho e vilão, daí ser o protagonista projetado como uma espécie de professor Xavier, leia-se um mentor mais voltado a gerir aspectos estruturais (dos atos implementados em nome de uma causa) e comportamentais (dos integrantes do grupo por ele liderado), ao passo que o algoz desalmado não possui qualquer motivação para além do desprezo aos comunistas, sendo seu interesse financeiro na caçada ao grupo de revolucionários sugerido mas não explorado. Não à toa Ramiro Batista conclui que o filme:

“Como nos melhores arrasa-quarteirão, é a jornada do herói compelido a sair de sua zona de conforto por uma situação injusta e posto diante das piores provações até o fundo do poço.

[...] Também como em todo melodrama de cortar os pulsos, carrega a mão no drama com o filho que terá que abandonar [...] .

[...] Para acentuar a crueldade do mundo mau (a ditadura militar) contra o herói idealista, amoroso com a família, leal com seus camaradas e generoso a ponto de aconselhar casados a desistirem, há o contraponto indispensável do antagonista bruto. 

O delegado mau como picapau, que prende, espanca ou mata, jovens, velhos ou padres, na presença ou não de crianças, que também costuma torturar. Sem família, sem dúvidas, sem generosidade com os colegas tratados a tabefes, sem nuances. Profundo como um pires.

[...] Seu grande equívoco como peça dramática foi dar o caráter de vilão de desenho animado ao delegado malvado, no objetivo de amplificar a maldade para acentuar a injustiça contra seu herói martirizado. 

Acabou num tom maniqueísta de obra para ser assistida e entendida em jardim de infância, não fosse a violência obrigatória, e sem espaço para dúvidas sobre a natureza política e militante de suas intenções artísticas.

Não há problema nisso. Há grandes diretores de ficção claramente militantes e revisionistas históricos sem medo de parecer parcial, como Oliver Stone, de Platoon, Nascido a 4 de Julho ou JFK, entre tantos outros.

[...] Se não há problema, também é verdade que coloca em perspectiva a sua limitação de diretor, ex grande ator que deu vida a anti heróis de carne, osso e nuances psicológicas, como o Capitão Nascimento de Tropa de Elite e o Pablo Escobar, de Narcos.

Fosse tão sofisticado quanto o ator, optaria por um vilão mais humano no seu filme, a fim de fazer uma autópsia mais abrangente da ditadura, em que não haveria só bandidos e mocinhos. Mas vítimas em geral de um período obscuro.

[...] Obras de alto quilate colocam o protagonista, mas também o antagonista, no confronto com suas ilusões”¹.

Nesta toada, sobra para um personagem coadjuvante, as vezes esquecido pelo filme, os momentos de ambiguidade que caracterizavam os opositores ao regime militar optantes pela luta armada, qual seja a figura interpretada por Humberto Carrão que, aliás, tem o melhor desempenho dentre os membros do elenco¹ ao vivificar um brasileiro que indignado com a ditadura que assola o país não titubeia antes de executar um atentado a bomba a uma embaixada, afinal para o mesmo é natural que em meio a defesa dos ideais perseguidos ocorram danos colaterais como a queda de inocentes. Essas complexas e discutíveis nuances - que haveriam de permear a abordagem do protagonista - são, desse modo, restritas a um personagem “menor” ao que parece no intuito de preservar o primeiro, o que, há de se convir, soa frustrante além de parcial em demasia.

Por último, cabe comentar acerca da direção de fotografia que no intuito de trazer o público para dentro da ação e, na medida do possível, retirá-lo da posição de espectador passivo, adota uma câmera por vezes subjetiva posicionada em ângulos que não raro desfavorecem o trabalho dos atores uma vez que em cenas nas quais os mesmo poderiam oferecer superlativas performances em closes são os mesmos sacrificados por tomadas que deixam seus rostos sob penumbra ou até ocultos, escolha estética que faz o longa-metragem perder em dramaticidade.

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1. Marighella é thriller político para ser entendido no jardim da infância. Disponível em https://www.em.com.br/app/colunistas/ramiro-batista/2021/11/16/noticia-ramiro-batista,1323092/marighella-e-thriller-politico-para-ser-entendido-no-jardim-da-infancia.shtml. Acesso em 09.12.2021.

2. A ótima participação de Humberto Carrão é seguida de perto pela performance do pastor Henrique Vieira que, ator de formação, recebe a oportunidade de exercitar, com excelência, seu talento artístico, circunstância que também denota o bom faro do ator e diretor Wagner Moura para detectar talentos entre seus pares.

 

FICHA TÉCNICA

Direção: Wagner Moura

Roteiro:  Wagner Moura , Felipe Braga, baseado na obra de Mário Magalhães

Produção: Wagner Moura, Andrea Barata, Bel Berlinck

Elenco: Seu Jorge, Adriana Esteves, Humberto Carrão, Bruno Gagliasso, Bella Camero, Luiz Carlos Vasconcelos, Herson Capri, Henrique Vieira, Carla Ribas, Brian Townes

Fotografia: Adrian Teijido

Montagem: Lucas Gonzaga

Figurino: Veronica Julian

Duração: 155 min.

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