Brincando nos Campos do Senhor / O Abraço da Serpente
Formas
de Olhar
No campo da antropologia a
alteridade implica no estudo das diferenças do outro, o que inclui a análise de
culturas e etnias diversas. O documentário moderno brasileiro, por
exemplo, se firmou, principalmente nos
anos 1960, em torno dessa relação de alteridade, na medida em que cineastas
voltaram seus olhares para outros indivíduos pertencentes a diferentes e, não
raro, marginalizadas classes sociais. Neste passo, o documentarista realizava
seu diagnóstico e de quebra ainda apresentava as possíveis soluções para os
problemas mostrados, sem que o ser analisado
tivesse sua voz posta em primeiro plano. Tal realidade começara a ser
amenizada a partir dos anos 1970 graças a “curtas
documentais que buscaram promover o sujeito da experiência à posição de sujeito
do discurso, tentativas e propostas para que o ‘outro de classe’ se afirmasse
sujeito da produção de sentidos sobre sua própria experiência”¹. Isto
posto, a relação de alteridade passou a ser implementada de dois possíveis
modos, quais sejam um no qual o ser estudado não passa de um personagem sem
poder de voz, sendo apresentado e interpretado pela figura extracampo do
diretor, e um segundo modo marcado pelo estudo do outro a partir de relatos
feitos por ele próprio que, assim, toma as rédeas do discurso, cabendo ao
diretor nessa hipótese reger a fala, para que, com o mínimo de intervenção, não
deixe ela de fazer sentido.
Por analogia, tal dualidade no
direcionamento do olhar, tão cara ao gênero documentário, pode ser percebida no
cinema de ficção em Brincando nos Campos
do Senhor (EUA/Brasil, 1991) e O
Abraço da Serpente (Colômbia, 2015) filmes esses que abordam a causa
indígena e as consequências nefastas da colonização sobre uma cultura agredida de
forma inescrupulosa por missionários que impunham sobre os índios os ditames do
cristianismo/protestantismo.
Dentro deste contexto, Brincando nos Campos do Senhor entrega o
olhar de Hector Babenco, um argentino naturalizado brasileiro, sobre a
problemática indígena na Amazônia seja quanto a perda de seu próprio território
seja quanto a uma segunda etapa do processo de aculturação a eles então imposto
por missionários protestantes que ocuparam o espaço e o público deixado pelos
católicos, o que resulta num novo exercício de condicionamento dessa vez
voltado ao abandono dos costumes cristãos em benefício da educação protestante.
Embora bastante interessante, tal
temática esbarra na relação de alteridade adotada por Babenco que, baseado no
romance Peter Matthiessen lançado em
1965, assume o papel do intelectual que, com esteio em seu olhar estrangeiro,
se considera apto a identificar
em pormenores os males enfrentados pela comunidade indígena. Fadado ao insucesso,
o pretensioso filme passa a todo instante a sensação de que o olhar de Babenco
carece de ‘conhecimento de causa’ sendo,pelo visto, as conclusões tecidas
frutos de um saber meramente bibliográfico e, portanto, carente de
credibilidade. Não fosse o bastante, o longa-metragem resta vitimado por sua
excessiva duração, por sérios problemas estruturais do roteiro, atabalhoado em
certas sequências e reducionista em outras², e por um elenco extremamente mal
conduzido e prejudicado pela questão da falta de representatividade seja pela
escalação do hollywoodiano Tom Berenger para encarnar o protagonista índio,
seja pela imposição sobre demais personagens e elenco brasileiro do inglês como
idioma.
De maneira inversa, O Abraço da Serpente, dirigido pelo
colombiano Ciro Guerra, se aproxima do documentário etnográfico, garantindo aos
indígenas, ainda que enquanto personagens de uma obra de ficção, a titularidade
do discurso. Nesse caso a nacionalidade de Guerra lhe permite compreender e tratar
com maior intensidade e fidelidade o histórico de privações, submissão e
extermínio vivido pelo povo indígena de seu país, não pairando no ar aquela incômoda
sensação de ser o questionável olhar de um forasteiro o condutor da trama, tal
como ocorrido na produção de Babenco.
Valendo-se da trajetória de dois
antropólogos que em décadas diversas da primeira metade do século XX
percorreram a floresta amazônica, a narrativa se bifurca em dois tempos
distintos mas habilmente fundidos pela edição para mostrar o choque
civilizatório surgido entre europeus e indígenas a partir do processo de
colonização e os resultados desastrosos produzidos por essa relação a longo
prazo. Sem jamais deixar de lado o viés antropológico, O Abraço da Serpente vence o risco que enfrentava de se tornar um
produto cinematográfico tedioso, e se impõe como uma realização que consegue ao
mesmo tempo ser bela, dada a hipnotizante fotografia em preto e branco, e crua,
aspecto esse em que ecos de Apocalipse
Now (EUA, 1979) são detectados quando mostrado a que ponto a floresta consegue
despertar loucura e perversão no homem branco. Tamanha complexidade da proposta
é desenvolvida na tela com pleno sucesso, graças a um roteiro não menos que
excelente e a uma direção que, sempre inspirada pela toada documental, evita estereótipos,
daí, com acerto, Francisco Russo concluir que “o longa-metragem logo se torna um imenso estudo antropológico, como
poucas vezes o cinema já produziu”³.
__________________
1. LINS, Consuelo e MESQUITA, Cláudia. Filmar o real: sobre o documentário
brasileiro contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 23.
2. Vide
a forma diferente com que são abordadas as figuras do padre e do pastor.
3. Disponível
em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-236295/criticas-adorocinema/.
Acesso em 27.11.16.
Ficha
Técnica - Brincando nos Campos do Senhor
Título
Original:At Play in The Fields of The Lord
Direção: Hector Babenco
Roteiro:
Hector Babenco, Jean-Claude Carrière, baseado no livro de Peter Matthiessen
Elenco: Kthy Bates, Aidan Quinn, Daryl Hannah, John Lithgow,
José Dumont, Nelson Xavier, Stênio Garcia, Tom Berenger, Tom Waits
Produção:
Saul Zaentz
Fotografia:
Lauro Escorel
Trilha
Sonora: Robert Randles, Zbigniew Preisner
Duração:
189 min.
Ficha Técnica - O Abraço da Serpente
Título Original:El
Abrazo de la Serpiente
Direção: Ciro
Guerra
Roteiro:
Ciro Guerra, Jacques Toulemonde Vidal, Richard Evans Schultes, Theodor
Koch-Grunberg
Elenco:
Antonio Bolivar, Brionne Davis, Jacques Toulemonde Vidal, Jan Bijvoet, Luigi
Sciamanna, Nicolás Cancino, Nilbio Torres, Yauenkü Migue
Produção:
Cristina Gallego
Fotografia:
David Gallego
Montador:
Etienne Boussac
Trilha
Sonora: Nascuy Linares
Estreia:
18/02/2016 (Brasil)
Duração:
125 min.
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