Elle



Aparências

Em “O Homem que Adorava Elevadores” Charles Bukowski narra a trajetória de Harry, um homem cujo prazer sexual é condicionado ao cometimento de estupros em elevadores. Certo dia, ao tentar repetir a dose com uma mesma vítima o violador tem sua catarse interrompida pela mulher que ao invés de esbravejar e espernear o convida para copular em seu apartamento. Tamanho consentimento frustra o agressor que, incapaz de seguir adiante, prefere seguir em busca de outra presa. É possível que esse conto de Bukowski tenha servido de inspiração para David Birke quando da adaptação da novela Elle de Philippe Djian; todavia, engana-se quem pensa que o longa-metragem homônimo dirigido por Paul Verhoeven se restringe ao tema do estupro e ao mistério sobre a identidade do criminoso, eis que a produção vai além ao explorar as mentiras sinceras, jogos de poder e manipulações que marcam o universo adulto, ramificando, para tanto, sua trama, com eficiência ímpar entre os personagens coadjuvantes que, ligados a protagonista, colaboram para formar uma teia de realidades aparentes, farsescas, como a seguir exemplificado:
a) Michèle Leblanc (Isabelle Huppert): assume postura inabalável,  o que justifica sua atitude, logo após o estupro sofrido, de primeiro limpar os cacos de vidro e objetos deixados no chão de sua sala de estar em virtude da luta corporal travada com o agressor para somente em seguida se livrar do sêmem e sangue nela entranhados. Todavia, por mais que a violência sexual recém experimentada aparente ser apenas mais uma das muitas provações de vida que de maneira rotineira e pragmática teve/terá de superar, os pensamentos da personagem não tardam a ser infestados por incômodas lembranças do ocorrido que a deixam num primeiro estágio confusa e adiante excitada perante o jogo de sedução que acaba instaurado entre ela e o estuprador.
b) Anna (Anne Consigny): é a melhor amiga de Michèle e segunda mãe do filho desta a quem amamentou ainda na maternidade; tal relação seria de uma fraternidade e lealdade absolutas não houvesse um leve interesse erótico entre as duas e não fosse Michele amante secreta do marido da primeira.
c) Vincent (Jonas Bloquet): filho de Michèle, aparenta ser um adulto empenhado em trabalhar para não depender financeiramente da mãe, independência essa que esbarra na subserviência demonstrada perante a namorada que dele abusa psicologicamente e que lhe empurra, sem qualquer traço de rejeição, uma paternidade que visivelmente não lhe diz respeito.
d) Rebecca (Virginie Efira): é a vizinha carola que, não obstante toda fé e retidão, mesmo sabedora dos fetiches do marido nada faz para intervir nos crimes por ele cometidos.
e) Kevin (Arthur Mazet): é o único funcionário de Michèle que por ela demonstra afeição, o que, entretanto, não o impede de praticar cyberbulling contra a patroa.
Em meio a tudo isso soa emblemático que Michèle explore profissionalmente o ramo dos games, isto é, da realidade virtual, afinal, ao que tudo indica para ela resulta mais simples lidar com dissimulações que com verdades nuas e cruas - vide os relacionamentos tempestuosos que a deixam como que de mãos atadas mantidos com a mãe, o namorado gigolô desta e o empregado que manifestamente a despreza - por ser aquele um terreno manipulável no qual sua experiência é uma aliada. A facilidade com que Michèle lida com a dissimulação pode ainda ser resultado de uma prática contumaz da mesma, qual seja “suscitar reações de agressividade, desprezo, desrespeito e violência contra si porque se compraz nelas, ou as considera mais limpas e honestas“¹, como salienta Isabela Boscov.
Tem-se, assim, possibilidades interpretativas que podem facilmente ser confrontadas com outras² graças ao trabalho de Verhoeven que as manuseia sem cometer o erro de eleger uma em detrimento de outra(s), refletindo, por conseguinte, que ninguém é absolutamente bom ou mal por mais vítima que seja em determinado instante ou como, novamente, Boscov conclui:

As pessoas são abismos, e é um alívio que ainda haja cineastas e atores com coragem para fazer filmes que não acham necessário resolvê-las, justificá-las, desculpá-las ou melhorá-las, mas que simplesmente reconhecem que elas são como são, e as abraçam do jeito que são³.
Esse emaranhado de relações de aparência é costurado com um humor cínico que não se escusa de flertar com o absurdo - tal como Pedro Almodóvar costumava fazer na fase, inicial, escrachada de sua filmografia -, daí, mais uma vez, Boscov corretamente observar que “Elle não é um drama. É um suspense erótico e uma comédia de humor negro. E é assim, transitando por gêneros que Verhoeven enfrenta assuntos espinhosos e sai do embate vitorioso compondo uma obra que não teme ser amoral para os padrões de uma época em que tudo tende a ser exaustivamente problematizado.
Dentro deste contexto, convém citar a análise de Iara Vasconcelos, a saber:
violentada por um homem mascarado [...] Michelle resolve manter o fato em segredo de sua família e amigos, deixando claro que Elle não é um filme sobre vingança.
[...]A história ganha novos contornos quando ela e o criminoso se envolvem em um jogo sexual perigoso e pouco compreensível ao espectador. Como ela consegue fazer isso mesmo depois de sofrer tamanha violência? Explicar isso não é o foco de Verhoeven. Não espere problematizações ou análises psicológicas. Elle está ali para mostrar que nem tudo no cinema precisa ser racional, preto no branco, ou ter uma lição por trás.
[...]o filme [...]  causa [...]desconfortos ao falar de estupro em um ambiente tão cômico. É difícil não projetar a nossa reação na personagem e até acharmos que seu conteúdo é misógino, mas Michelle não foi criada para ser uma "vítima ideal" e isso nos tira de nossa zona de conforto.
Dito isso, é um deleite constatar que Verhoeven não almeja a piedade alheia para sua protagonista, uma vez que não busca tornar a mesma nem mártir – erro cometido, por exemplo, em Paulina (Argentina, 2015) – nem vítima, ainda que de fato assim seja quanto ao crime sexual inicialmente sofrido, isso porque, não é o referido ato de violência que tornará a personagem melhor ou pior, visto que sua personalidade e seus atos são na verdade moldados a ferro e fogo pelos anos pretéritos de dificuldades e humilhações aos quais fora exposta em decorrência da série de assassinatos cometidos pelo pai psicopata. Em outras palavras, não é o estupro que fará de Michèle mais ou menos digna, por mais hedionda que seja tal prática. Não é o estupro que a tornará mais ou menos ética. Sua moralidade está além disso.
Neste sentido, vale especular o quão complexa há de ter sido a construção narrativa e imagética de Elle (França/Alemanha/Bélgica, 2016), pois, como pondera Mariane Morisawa, “em vez de evitar minas, Verhoeven vai ao encontro delas⁶; daí que qualquer passo em falso do cineasta em meio ao modo controverso e polêmico com que trata os delicados assuntos questionados pelo roteiro poderia prejudicar de maneira irremediável o resultado final da obra. Felizmente, a falta de pudor com que abraça e até reverencia as ambiguidades e vicissitudes do comportamento humano torna o filme deveras interessante e provocativo na medida em que alerta o espectador para o fato de que a arte não se presta a pôr panos quentes e sim a instigar e estimular discussões, tarefa essa que Elle, há de se convir, cumpre com louvor.
____________________________________
1.Disponível em http://veja.abril.com.br/blog/isabela-boscov/elle/. Acesso em 10.04.17.
2.A própria Isabela Boscov entende, por exemplo, ao contrário do que aqui é defendido que Michéle afasta as imagens do estupro “sem muita dificuldade nem muito sofrimento” e que nela não há “qualquer respeito pelos pequenos fingimentos que lubrificam as relações sociais” (Op. Cit.)
3-4.Op. Cit.
5.Disponível em https://www.cineclick.com.br/criticas/elle. Acesso em 10.04.17.
6.Revista Preview. Ano 8. ed. 86. São Paulo: Sampa, Novembro de 2016. p.51.

Ficha Técnica


Direção: Paul Verhoeven

Roteiro: David Birke

Elenco: Isabelle Huppert, Alice Isaaz, Anne Consigny, Anne Loiret, Arthur Mazet, Charles Berling, Christian Berkel, David Léotard, Hugo Conzelmann, Hugues Martel, Jonas Bloquet, Judith Magre, Laurent Lafitte, Loïc Legendre, Lucas Prisor, Nicolas Beaucaire, Raphaël Lenglet, Stéphane Bak, Vimala Pons, Virginie Efira

Produção: Michel Merkt, Saïd Ben Saïd

Fotografia: Stéphane Fontaine

Montagem: Job ter Burg

Trilha Sonora: Anne Dudley

Estreia no Brasil: 17.11.2016

Duração: 130 min.

Comentários

LEIA TAMBÉM