De Canção em Canção



Ainda Indispensável

Terrence Mallick já atrai uma crítica que muitos costumam endereçar a Woody Allen, qual seja a acusação de fazer sempre o mesmo filme. No caso de Allen, ainda que tal comentário aparente por vezes ter seu quê de procedência (sem que isso necessariamente soe como um demérito), percebe-se que o cineasta volta e meia quebra a rotina de produção de comédias, gênero que voltou a privilegiar desde meados dos anos 90, para de tempos em tempos entregar trabalhos soturnos como Match Point e O Sonho de Cassandra. Já Mallick tem, desde A Árvore da Vida (EUA, 2011), composto obras parecidas, sobretudo quanto ao aspecto formal, com prevalência de uma câmera que transita de maneira fluida entre os personagens e elementos da natureza, além da priorização da narração em voz over e construção de uma narrativa entrecortada cuja colagem de imagens não raro faz um mesmo relato do narrador oculto ser desenvolvido ao longo de diferentes cenários e momentos.
Dentro deste contexto, o conteúdo da recente cinematografia de Mallick pode até se interligar entre os seus filmes, mas não deve ser encarado como repetitivo ou irrelevante, já que o diretor não só permanece tendo o que acrescentar como o faz de modo provocativo, desafiando a atenção do espectador para, repita-se, a localização da trama no tempo e no espaço como também para os símbolos nela inseridos. Dito isso, para, por exemplo, melhor absorver De Canção em Canção (EUA, 2017) é interessante que o público conheça de antemão a teoria dos amores líquidos do sociólogo Zygmunt Bauman, segundo o qual os relacionamentos e sentimentos nos tempos atuais deixaram de ser sólidos e resistentes como os de outrora para se tornarem fugidios. Assim, relações escorrem entre os dedos feito água porque as pessoas passaram a adotar a conduta do descarte ao invés do reparo, o que, consequentemente, as deixa fadadas a solidão.
Nesta toada, o longa-metragem explora tal ideia valendo-se para tanto de um signo que se faz presente durante toda sua duração: a água. Por isso, personagens estão quase sempre rodeados por água quando não com os pés dentro dela, como a denotar que o território de sentimentos no qual pisam nada possui de firme. Não à toa, já próximo ao fim, o personagem de Ryan Gossling corre de costas na beira da praia para fugir das ondas que arrebentam, o que pode sugerir uma busca por nova perspectiva de segurança e estabilidade para o relacionamento amoroso então reatado com Fayer (Rooney Mara), previsão ao que parece adiante eliminada quando então o casal é visto novamente rodeado por meio aquoso. Tal exemplo serve para demonstrar que mesmo parecidos os modus operandis de seus últimos títulos, há sim algo que os diferencia e os torna ímpares: a forma com que Mallick se comunica em cada ocasião mediante símbolos e reflexões que além de agregar valor aos respectivos conteúdos de cada filme, estimulam o raciocínio e o conhecimento da audiência.
Dentre os pontos baixos percebidos em De Canção em Canção, é de se lamentar que a edição, tormentosa para qualquer montador, acabe sacrificando as personagens femininas de Cate Blanchett e, principalmente, de Natalie Portman que resultam subaproveitadas em meio ao poder que dispunham de interferir e/ou impactar o triângulo amoroso protagonista da história. Some-se a isso o fato de a música, um elemento caro a uma produção com tal título, servir como mero pano de fundo, não tendo importância maior no enredo. Sopesados os prós e contras da obra, é possível concluir que sim, Mallick repete um tanto a fórmula de seus últimos trabalhos, cometendo, por vezes, alguns equívocos em sua mise-én-scène, como as citadas alhures, ressalvas que, entretanto, não afastam a relevância de seu modo não convencional e, por conseguinte, desafiador de fazer cinema, no que se inclui o diálogo com a plateia mediante o manejo de signos eficientemente arquitetados, elementos, como visto, presentes em De Canção em Canção e que colaboram para torná-lo indispensável a quem espera da sétima arte algo além do simples entretenimento bancado pela montagem invisível.
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2.  Dado, como mencionado alhures, a opção de numa mesma sequência haver o trânsito da câmera por locais diversos numa continuidade fora dos padrões que inclui até a troca de figurinos enquanto uma mesma narração se desenvolve.

Ficha Técnica

Direção e Roteiro: Terrence Mallick
Produção: Ken Kao, Nicolas Gonda, Sarah Green
Elenco: Michael Fassbender, Ryan Gosling, Rooney Mara, Cate Blanchett, Natalie Portman, Val Kilmer, Holly Hunter, Iggy Pop, Bérénice Marlohe, Florence Welch, Patti Smith, Lykke Li, John Lydon
Fotografia: Emmanuel Lubezki
Montagem: Rehman Nizar Ali, Hank Corwin, Keith Fraase
Direção de Arte: Jack Fisk
Estreia: 20/07/2017 (Brasil)
Duração: 128 min.

Comentários

  1. Complicado, mas muito agradável. Terrence Malick é um daqueles diretores que ou se ama ou se odeia. Sua estética apurada, de linguagem rebuscada e muito existencialismo conquista o público com a mesma intensidade que o afasta, e um exemplo dessa relação de amor e ódio é seu novo trabalho DE CANÇÃO EM CANÇÃO, que novamente traz um elenco estelar com Michael Fassbender, Ronney Mara, Ryan Gosling (Do óptimo Novo Filme Blade Runner 2049 ), Natalie Portman e ainda conta com várias outras participações mais do que especiais, que falaremos mais a frente. DE CANÇÃO EM CANÇÃO é a prova de que o talento contemplativo e filosófico de Malick pode abordar vários temas e tomar várias formas, afinal, não importa o que façamos ou como vivamos – a reflexão sempre será necessária. Nossa existência depende disso, pois assim como disse o filósofo francês René Descartes no livro O Discurso do Método de 1637: “Desde que eu duvide, eu penso; porque eu penso, eu existo”.

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    1. Olá, obrigado pela participação! Como René Descartes foi citado , acrescento que suas lições serviram de apoio para outra análise disponibilizada nesse blog. Veja mais em: https://setimacritica.blogspot.com/2014/09/um-tiro-na-noite.html .

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