Os 8 Odiados
Mudanças do Estilo Mantido
Em Os 8 Odiados (EUA, 2015) Quentin Tarantino mantém duas das
características de sua filmografia: a verborragia e a sanguinolência. Contudo,
tais elementos dessa vez são manejados em uma toada distinta de seu costumeiro
ritmo frenético, daí o dinamismo de outrora ceder lugar a um tempo cadenciado
que para alguns pode custar a passar. Neste sentido, é certo que alguns minutos
poderiam até ser suprimidos do corte final, porém, dúvida também não
há de que o cineasta mudou não por mero capricho, mas sim porque a
trama por ele elaborada pedia tal postura.
Explique-se:
confinados numa cabana em Wyoming por conta de uma nevasca, os personagens do
título desconfiam que a reunião deles naquele local não ocorrera por acaso, afinal
uma prisioneira valiosa está ali presente, razão pela qual parece óbvio que alguém
está ali para libertar ou tomar para si a mulher que entregue viva ou morta
renderá uma vultosa recompensa. Desta feita, o que se vê é um exercício de
paciência no qual homens inescrupulosos estudam meticulosamente os passos uns
dos outros para assim descobrir a verdade sobre quem é quem antes que seja
tarde.
Essa inquietante
espera é deliberadamente transferida para o espectador que passa, por
conseguinte, a provar da dúvida e da impaciência encaradas por alguns dos
odiados. Logo, a ação
violenta e desmedida, tão ansiosamente desejada por aqueles cuja sede de sangue
é urgente, custa a eclodir porque existe motivo para tal
“demora”, qual seja a necessidade de dar o tom dos motivos e do caráter de cada
figura para que a brutalidade do epílogo possua fundamento e passe longe de
qualquer banalização.
Dentro deste contexto, vale ressaltar, salientar e frisar
que em momento algum esse processo de investigação das personalidades e da busca
da verdade pelos confinados soa tedioso, isso porque:
a) No
aspecto formal é deveras interessante ver Tarantino inserindo em seu cinema uma
linguagem teatral¹ (algo que não ocorria desde suas estreia em Cães de Aluguel), afinal em grande
parte da história os personagens dividem o mesmo ambiente, o que, em contrapartida, não representa problema narrativo algum
graças:
- a ótima direção de fotografia de Robert
Richardson, magistral em sua fração épica e extremante eficiente em sua porção
intimista,
- as intersessões musicais de Ennio
Morricone, responsáveis por, de maneira acachapante, colaborar com o processo de
instauração do suspense e da tensão,
- aos diálogos primorosos não raro
permeados por tiradas cômicas idem.
b)
Quanto
ao conteúdo, a forma saborosa com que os diálogos são perfilados se deve a
profundidade não panfletária com que temas complexos são tratados. Tarantino esbraveja
contra a segregação racial bem como contra a violência à mulher de uma maneira
politicamente incorreta ao extremo. Ao modo Sam Peckinpah, o cineasta
mostra e faz seus personagens dizerem aquilo que a incomoda a muitos, escancarando feridas de uma forma tal que comumente acaba incompreendido
e rotulado como fetichista, preconceituoso ou misógino. Em Os 8 Odiados a coragem do diretor nesse aspecto por
vezes beira a insanidade o que, logicamente, torna ainda mais palatável a
degustação do tempo de ‘calmaria’ da obra.
Assim, quando o
momento da esperada catarse enfim chega, a narrativa resta plenamente
desenvolvida quanto aos seus arcos dramáticos, deleite esse que se torna ainda
maior graças ao prazer que é assistir um elenco tão competente em ação, sendo
mister nesse diapasão destacar, principalmente, as interpretações de Samuel L.
Jackson (o que não é nenhuma novidade), Jennifer Jason Leigh (sendo, tal como Tarantino adora
fazer, retirada do ostracismo ao qual ficara relegada após uma prolífica década
de 1990), Demián Bichir (quase irreconhecível em meio ao visual e ao sotaque
carregado) e Kurt Russel (no melhor papel de sua carreira).
Em meio ao
balaio de qualidades de Os 8 Odiados, alguns
senões, contudo, não podem ser ignorados, quais sejam os já mencionados minutos que poderiam ser
eliminados na edição sem comprometimento do enredo - um problema de pouca
gravidade, convenhamos -, além da armadilha enfrentada com pouca originalidade
pelo roteiro que num determinado instante precisa apelar para uma narração em
voz over e flashbacks para que
algumas situações façam sentido, estratégia passível de questionamento quanto a
falta de ineditismo, mas que pode vir a ser absolvida das críticas caso levado
em consideração que o recurso da não-linearidade também é uma marca da
cinematografia de Tarantino experimentada desde, novamente, Cães de Aluguel (EUA, 1992) – em outras
palavras, o problema inerente do filme acaba atenuado por uma justificativa
externa a ele.
E é dessa
maneira, arriscando-se numa mudança de ritmo sem largar mão por completo de
alguns dos fatores que tornam seus trabalhos imediata e facilmente
reconhecíveis e identificáveis (no que se inclui, por óbvio, o gosto por
referências e homenagens a produções de outrora²) que Quentin Tarantino entrega
mais uma obra indubitavelmente relevante e digna de uma carreira irretocável.
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1.Neste passo, Isabela Boscov acrescenta: “Tão teatral é
a estrutura de Os Oito Odiados que Tarantino pretende encená-lo no palco no futuro
próximo” (FONTE: http://isabelaboscov.com/2016/01/06/8-odiados/.
Acesso em 07.01.16).
2.Em Os 8 Odiados as referências a Sergio
Leone já vistas em Bastardos Inglórios
são novamente perceptíveis, mas o que salta mesmo aos olhos é a homenagem na
sequência de abertura aos minutos iniciais de Agonia e Glória (EUA, 1980) de Samuel Fuller.
FICHA TÉCNICA
Direção e Roteiro:
Quentin Tarantino
Elenco: Samuel L.
Jackson, Kurt Russel, Channing Tatum, Belinda
Owino, Bruce Del Castillo, Bruce Dern, Craig Stark, Dana Gourrier, Demián
Bichir, Gene Jones, James Parks, Jennifer Jason Leigh, Keith Jefferson, Lee
Horsley, Michael Madsen, Tim Roth, Walton Goggins, Zoe Bell
Produção: Richard N.
Gladstein, Shannon McIntosh, Stacey Sher
Fotografia:
Robert Richardson
Montagem: Fred
Raskin
Trilha Sonora:
Ennio Morricone
Estreia:
07/01/2016 (Brasil)
Duração: 182
min.
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