O Rito
Liberdade Para a Arte
Em um país
qualquer da Europa um trio de atores é acusado de obscenidade em virtude de um
número teatral por eles apresentado, daí passarem a ser investigados por um
juiz que não raro extravasa os limites do objeto da investigação adentrando,
então, na seara íntima dos artistas num jogo opressor de humilhação que visa
tanto sanar a curiosidade hipócrita do servidor estatal sobre as relações
interpessoais dos artistas quanto cumprir a missão a ele delegada de embasar o
almejado veto ao espetáculo teatral, garantindo, desta feita, uma pretensa
legalidade para o ato.
Produzido
para a televisão, O Rito (Suécia,
1969) é mais uma marcante obra de sondagem psicológica de Ingmar Bergman, viés
esse manifestado, sobretudo, na impressionante dubiedade de seus quatro únicos personagens¹,
quais sejam:
·
Hans Winkelmann (Gunnar Björnstrand): embora numa cena revele ter um enorme medo da solidão e do abandono a
ponto de aceitar com total resignação que sua mulher se relacione amorosamente
com o parceiro de cena, é por outro lado, o porto seguro do trio, um confiável
condutor em meio ao turbilhão de emoções, sentimentos e gastos desenfreados
experimentados pelos outros dois membros da equipe; Hans é, desta feita, uma
espécie de figura paterna necessária ainda que pouco valorizada e respeitada, o
que compreensivelmente o deixa fatigado e determinado a procurar novos rumos e
parcerias.
·
Thea Winkelmann
(Ingrid Thulin):
ao que parece nem a própria atriz parece ter certeza de quando está ou não
representando perante as demais pessoas; suas performances frequentemente vão para
além dos palcos, encarnando quando conveniente uma persona frágil e insegura
cujos traumas do passado levaram-na a desenvolver uma espécie de gagueira nos
momentos de tensão. Tudo isso, contudo, pode não passar de mera encenação,
ludibriação, eis que adiante, na intimidade compartilhada num quarto de hotel
com o colega Sebastian Fisher se revela uma predadora voluptuosa e sedutora que
não demonstra qualquer tipo de remorso por trair o marido, daí fazê-lo de forma
tão acintosa. Thea funciona como ponto de atração entre os quatro homens seja
em razão do triângulo amoroso vivido, seja em virtude de ser a vítima do ato
mais brutal, inconsequente e irracional praticado pelo juiz que a investiga: um
estupro, momento esse em que a fragilidade do seu sexo é latente, o que, vale
dizer, acaba configurando uma bifurcação do roteiro de Berman ao passo que além
de bradar contra toda e qualquer forma de contenção da liberdade de expressão,
também vocifera contra a opressão masculina sobre a mulher.
·
Sebastian Fisher (Anders Ek): Entre os homens Sebastian é um valente que
já fora até encarcerado pelo homicídio de um colega de profissão, mas frente a
figura feminina fracassa em sua empáfia e titubeia em suas certezas. Talvez
seja o mais radical e impetuoso dos personagens; contraditoriamente,
entretanto, a firmeza de seus pensamentos rui ante o envolvimento com Thea,
isso porque ela é a única pessoa que consegue atordoá-lo ao ressaltar que,
paradoxalmente, sua satisfação sexual advém do que o marido Hans lhe
proporciona na cama e não por ele enquanto amante. É em decorrência desse
envolvimento extraconjugal que o ator apresenta vestígios de humanidade ao
lamentar trair o amigo, sensação que, todavia, não é suficiente para evitar que
ele questione a Hans o que é preciso para dar prazer a Thea. Dessa maneira, o
ligeiro remorso de Sebastian não passa de uma farsa moldada para tranqüilizar
sua própria consciência, estratégia que o próprio Ingmar Bergman um dia assim
descrevera: “sentimos culpa para nos
infligirmos um sofrimento tolerável muito pequeno em relação àquele que
causamos nos outros”².
·
Juiz Abrahamson (Erik Hell): inicialmente cordial, o servidor público não tarda a
demonstrar sua intenção/missão: punir os investigados e cercear a liberdade
artística e de expressão. Não a toa, seu
modus operandi frequentemente inclui
a abordagem de questões paralelas e pretéritas que nenhuma relação possuem com
a acusação de indecência por ele analisada. Destarte, o juiz representa a
figura do Estado-violência em sua construção de pretextos para embasar uma
decisão que já fora tomada desde a acusação. Uma vez que a culpa dos réus já
está estabelecida de antemão, cabe ao juiz apenas escarafunchar com a sordidez
que o totalitarismo permite, a vida íntima daqueles, tarefa essa que Abrahamson
cumpre com requintes de crueldade a ponto de violentar Thea Winkelmann num
descompasso que é tão grande quanto os instantes em, que se deixa ofender
física e psicologicamente por Sebastian, seu principal algoz e responsável por
reverter o pólo passivo da humilhação. Na relação entre Sebastian e o juiz,
este último é o oprimido, o fraco que é achatado por uma implacável força
externa.
Com efeito,
Ingmar Bergman constrói um intrincado jogo de poder no qual cada personagem a
seu devido tempo subjuga aquele que está imediatamente mais próximo. Tais seres
duelam entre si, daí sempre um descontar no outro a derrota sofrida perante um
oponente superior. O “conflito entre a
arte e a ordem”³ visto em O Rito é
fruto de uma cadeia de ambigüidades decorrente do choque entre razão e emoção
provado por personagens que de tão dúbios constantemente se revezam no topo da
cadeia de humilhações entre eles existente numa desordem hierárquica que
coaduna a idéia de que a arte não pode seguir ordens, certeza essa que é a
única expressa por Bergman num cenário repleto de incertezas - neste diapasão,
é simbólico que em meio a coleção de derrotas experimentada, Hans Winkelmann
seja, enquanto principal executor do número teatral apresentado frente ao juiz,
aquele que, porém, conquista a espécie de vitória final da arte sobre a
censura, coroando, dessa maneira, a brilhante corrente de dubiedade e
contradição engendrada por Bergman.
Vale lembrar
que a estrutura teatral do filme, cujas sequências são sempre ambientadas num
único espaço, sem tomadas externas nem entrada e saída de atores de cena,
somada a uma direção de fotografia com predomínio de closes e planos próximos – recurso, aliás, usado com freqüência
pelo cineasta sueco numa filmografia de títulos marcados por rostos – instaura na
obra uma sensação claustrofóbica que alude a forma como os personagens se
sentem sufocados uns pelos outros.
Nesta toada,
o ato final é o mais impressionante de todos seja pelo ritual pagão encenado
seja pelo figurino por eles utilizado⁴ numa
composição estética que eleva ao ápice a carga erótica do filme. Sim, O Rito se vale de um erotismo aguçado
como poucas vezes visto no cinema de Bergman. Dentro deste contexto, o sexo
funciona como instrumento de domínio e de humilhação das figuras retratadas,
afinal, é pelo sexo que uns são agraciados e outros torturados e é também pelo
sexo que a figura da mulher se enquadra na realidade subalterna da época, mas
também sai vitoriosa ante a pequenez de seu opressor. Não só o corpo seminu de
Thea é uma poderosa ferramenta de sedução, como as máscaras e falos ostentados
pelos atores reforçam a prática de uma arte provocativa que desafia pudores em
nome de um conceito intrínseco ao projeto desenvolvido e em última instância em
defesa da liberdade criativa e de expressão.
Como sabido,
as obras de Ingmar Bergman possuem considerável teor autobiográfico, conforme
salienta Ricardo Cota, in verbis:
Filho de pastor luterano, [o
cineasta] amargou uma criação autoritária, baseada em conceitos relacionados ao
pecado, confissão, castigo, perdão e indulgência. Em sua autobiografia, Lanterna
mágica, Bergman faz relatos impressionantes. Sempre que contava uma mentira
recebia castigos constrangedores, como desfilar vestido de menina ou ser
trancafiado num armário. É nesse período que vivencia sentimentos como vergonha
ou humilhação, tão explorados em seus filmes⁵.
Não à toa
Bergman sabia escrever sobre humilhação como ninguém e O Rito é uma prova disso dada a forma como os personagens se
espezinham e por vezes até sentem prazer em serem maltratados – neste sentido,
há quem defenda que a cópula entre o juiz e a atriz não deve ser taxada como
estupro vide o consentimento da mulher manifestado no frame em que ela própria abaixa sua roupa íntima para facilitar a
penetração, não obstante suas feições e vocalizações sugiram o desespero de
quem está prestes a ser violentada⁶- tal comportamento ilustra aquilo que anos
antes do lançamento do filme Simone de Beauvoir escrevera: “O opressor não seria tão forte se não
tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”⁷. Seja como for, Bergman
deixa no ar a dúvida sobre se o que a atriz sente é prazer ou dor, contudo
deixa claro o elemento inerente a qualquer uma das hipóteses: a humilhação, a
submissão ante uma ordem superior.
Considerando,
ainda, a natureza autobiográfica do trabalho do diretor, O Rito também chama a atenção por seu caráter premonitório, na
medida em que sete anos após sua realização Bergman fora acossado e encarcerado
pelo Poder Judiciário sueco sob a acusação de cometimento de sonegação fiscal,
daí ser tão emblemática a cena em que o juiz interroga os acusados de obscenidade
quanto aos seus rendimentos e as respectivas declarações feitas por eles
perante o fisco.
Merece ser
lembrado que a forma exitosa com que Bergman explora as ambigüidades do ser
humano e a opressão do Estado frente a manifestações que atentam contra a ordem
pré-estabelecida é produto do preciso e sucinto roteiro do sueco, da
supracitada fotografia de Sven Nykvist como também do trabalho de seus
intérpretes, no que se destaca principalmente a participação de Erik Hell na
pele do juiz que ao patinar na hipocrisia por diversas vezes flerta com o modo
de vida daqueles que investiga sem abrir mão de toda a virulência
extra-oficialmente autorizada contra aqueles⁸.
Isto posto, num
tempo em que a liberdade de expressão artística tem sido equivocada e insistentemente
contestada⁹, a relevância e pertinência de O Rito se mostra inconteste na medida em que denota o quão bruta a
censura em um Estado totalitário consegue ser. No embate entre a arte e a
suposta ordem, Ingmar Bergman avista apenas uma vitória absoluta: a da arte,
tal como um dia Gilles Deleuze assim proferira: “A arte é o que resiste: ela resiste a morte, a servidão, a infâmia, a
vergonha”¹⁰.
___________________________
1. Tal contagem
não leva em consideração a figura do padre interpretado pelo próprio Ingmar
Bergman em rápida aparição.
2. Depoimento
concedido para o documentário A Ilha de
Bergman (Suécia, 2004), dirigido por Marie Nyreröd.
3. Termos
utilizados por Eli Magalhães no texto “O Rito” de Ingmar Bergman, disponível em
http://antesquixote.blogspot.com.br/2009/01/o-rito-de-ingmar-bergman.html.
4. A mise-en-scène de Bergman nesse sentido
permite até especular que o modo como erotizara de forma sombria e enigmática
os planos podem ter servido décadas depois de inspiração para Stanley Kubrick
quando da realização de seu derradeiro trabalho De Olhos Bem Fechados.
5. Ingmar Bergman
(1918- ) - O cinema transcendental in
http://www.terra.com.br/cinema/favoritos/bergman.htm. Acesso em 08.02.2016.
6. Octavio Caruso
defende essa ideia na análise disponível em http://www.devotudoaocinema.com.br/2014/06/ingmar-bergman-o-rito.html.
Acesso em 08.02.2016.
7. BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo Vol 2: A Experiência Vivida, Difusão
Européia do Livro, 1967.
8. Dentro deste
contexto, o interesse apaixonado do censor pelos trabalhos objetos de censura e
pelos atores e responsáveis pela feitura daqueles fora recentemente vista séria
Magnífica 70, produção nacional televisiva que denota o quão influente a obra
de Ingmar Bergman permanece.
9. Vide, por
exemplo, o episódio, por muitos justificado e/ou atenuado, do atentado
terrorista a sede do jornal Charlie
Hebdo ocorrido em 2015.
10. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 215.
FICHA TÉCNICA
Título Original: Ritten
Direção e Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Anders Ek, Erik Hell, Ingrid Thulin, Ingmar Bergman
e Gunnar Björnstrand
Fotografia: Sven Nykvist
Duração: 72
min
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