Florence: Quem É Essa Mulher? / Marguerite
Os
Desafinados Também Têm um Coração
“A obra de arte não deve ser a beleza em si
mesma, porque a beleza está morta” (Tristan Tzara)
Marguerite (Bélgica/França/República
Checa, 2015) e Florence: Quem É
Essa Mulher? (EUA, 2016) discorrem sobre a história de uma mesma
protagonista. Felizmente, contudo, as obras diferem extremamente entre si, a
começar pelo gênero.
Se de um lado a produção francesa
é um drama de época apenas inspirado na personagem real - daí seu interesse não
residir no relato fiel dos fatos, mas sim na compreensão dos desvios
psicológicos de uma mulher incapaz de reconhecer suas deficiências, bem como na
conduta oportunista dos que a rodeiam - na outra ponta o longa-metragem
norte-americano opta pelo caminho da comédia e o faz de maneira simpaticíssima sem,
entretanto, se furtar de também apresentar os toques dramáticos exigidos pela
narrativa.
E é nessa toada que Florence supera qualquer baixa
expectativa daqueles que ainda veem a comédia como um gênero limitado e por
isso menor, afinal, em meio a sua leveza o trabalho de Stephen Frears dá aos
personagens uma dubiedade ausente no título europeu, isso porque enquanto em Marguerite as figuras retratadas possuem
personalidades na maior parte do tempo estáticas sendo simplesmente boas ou
más, no filme estrelado por Meryl Streep há um profundo exercício de
relativização de arquétipos, o que resulta na construção de figuras tão éticas quanto
traidoras.
Favorece tal resultado a opção do roteirista
Nicholas Martin por trabalhar
com um número reduzido de personagens, ao contrário de Marguerite que acaba perdendo tempo com pessoas e subtramas que
nada acrescentam. Nesse sentido, a comparação entre os roteiros gera a
impressão de que Florence lima
personagens, mas não suas características que acabam incorporadas pelo escasso
núcleo visto na tela.
Neste passo, o principal exemplo
de acúmulo de qualidades e defeitos é encontrado na figura do companheiro da
protagonista, eis que se em Marguerite
ele é um ser ranzinza que ao invés de amor sente pela parceira apenas dó e
culpa, em Florence o mesmo é mostrado como alguém de uma devoção
religiosa a amada que paralelamente não se esquiva de manter relacionamento
íntimo com outra mulher, décadas mais jovem, com quem satisfaz os desejos da
carne e demais prazeres mundanos. Tal infidelidade, cabe frisar, em momento
algum significa para o personagem que seu amor por Florence seja uma farsa,
afinal, tudo o que lhe interessa é ver a idolatrada parceira feliz, o que
inclui satisfazer as ambições artísticas dela e suas¹, além de lutar para
manter ao redor da aspirante a cantora uma redoma protetora contra troças e
chacotas.
O êxito do roteiro de Florence em criar personagens
multifacetados é tão grande que até o comportamento da protagonista resulta
diferenciado da sua versão francesa na medida em que Marguerite, interpretada
por Catherine Frot, parece apenas
uma socialite alienada à verdade - o
que pode ser compreendido como um prenúncio de esquizofrenia - enquanto a
Florence de M. Streep deixa sempre no ar uma dúvida: será que ela não consegue
constatar o quão péssima é cantando em razão de eventual confusão mental causada
pela sífilis ou será que, ao contrário, ela apenas finge não perceber?
Graças a riqueza do roteiro e a competente
direção de Frears, Florence: Quem É Essa
Mulher? entrega performances
incríveis do elenco, aspecto esse em que é impossível não enaltecer os
desempenhos de Streep, perfeita como de costume, Simon Helberg - à vontade
encarnando um tipo abobalhado em meio a consideráveis descobertas profissionais
e sexuais - e, sobretudo, Hugh Grant que consegue congrega todas as nuances de
seu personagem com o charme que lhe é peculiar, banhando-o, assim, da
humanidade necessária para manter o papel imune a julgamentos simplórios.
Não obstante suas diferenças, Marguerite e Florence igualam seus discursos já próximo de seus respectivos
términos quando questionam se a mera distinção entre belo e feio é suficiente
para valorar uma manifestação artística sincera, intensa e repleta de paixão. A
provocação é interessante e até poderia ser mais estimulada pelas produções que,
em contrapartida, preferem não se aprofundar nessa polêmica. Seja como for, independentemente
do posicionamento de cada espectador a esse respeito, uma conclusão é possível
tecer sem exagero: Florence Foster Jenkins, para o bem ou para o mal, mesmo sem
saber, prestara fervorosa defesa aos ideais do movimento dadaísta que, iniciado
em 1916, defendia uma arte plenamente espontânea e avessa à lógica e a postura
racional.
__________________________
1.
Na
condição de ator fracassado, aquele homem tenta dar vazão a sua veia cênica abrindo
as apresentações da mulher, quando por ela autorizado, com monólogos que interpreta
sob o ar incomodado de Florence que, a despeito da carência de talento de ambos,
pelo visto prefere não ter a sombra do companheiro ofuscando seu brilho.
Ficha Técnica – Florence: Quem É Essa Mulher?
Título Original: Florence Foster Jenkins
Direção: Stephen Frears
Roteiro: Nicholas Martin
Elenco: Meryl Streep, Hugh
Grant, Christian McKay, Danny Mahoney, Dar Dash, David Haig, David Menkin,
Dilyana Bouklieva, Elliot Levey, Greg Lockett, James Sobol Kelly, John
Kavanagh, Jorge Leon Martinez, Josh O'Connor, Liza Ross, Marie Borg, Mark
Arnold, Martin Bratanov, Martyn Mayger, Neve Gachev, Nina Arianda, Paola
Dionisotti, Phelim Kelly, Philip Gascoyne, Philip Rosch, Rebecca Ferguson, Rosy
Benjamin, Sid Phoenix, Simon Helberg, Solomon Taiwo Justified, Stephanie Lane,
Tony Paul West
Produção:
Michael Kuhn, Tracey Seaward
Fotografia:
Danny Cohen
Montagem:
Valerio Bonelli
Trilha
Sonora: Alexandre Desplat
Estreia:
07/07/2016 (Brasil)
Duração:
110 min.
Ficha
Técnica – Marguerite
Direção: Xavier
Giannoli
Roteiro:
Marcia Romano, Xavier Giannoli
Elenco:
André Marcon, Astrid Whettnall, Aubert Fenoy, Boris Hybner, Catherine Frot,
Christa Theret, Christian Pereira, Denis Mpunga, Grégoire Strecker, Jean-Yves
Tual, Joël Bros, Lubos Veselý, Lucie Strourackova, Martine Pascal, Michel Fau,
Petra Nesvacilová, Pierre Peyrichout, Sophia Leboutte, Sylvain Dieuaide, Théo
Cholbi, Vincent Schmitt
Produção:
Marc Missonnier, Olivier Delbosc
Fotografia:
Glynn Speeckaert
Montador:
Cyril Nakache
Trilha Sonora:
Ronan Maillard
Estreia:
23/06/2016 (Brasil)
Duração:
127 min.
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