Francofonia – Louvre Sob Ocupação



Técnicas Revisitadas

Principalmente durante suas primeiras décadas de vida o documentário se valeu da técnica da encenação, o que na prática implica dizer que ao invés de determinado assunto ser esmiuçado através de entrevistas e imagens de arquivo - como se tornou comum a partir de meados dos anos 1960 -, fazia-se a reconstituição dos fatos narrados mediante o uso de atores que podiam ou não ser acompanhados na tela por pessoas oriundas do ambiente estudado ou de algum modo envolvidas com o tema tratado – neste sentido, o exemplo talvez mais representativo dessa espécie de trabalho seja Nanook, o Esquimó (1922).
Dito isso, os documentários encenados tem em comum o fato de não colocarem frente as câmeras os verdadeiros protagonistas da história/assunto narrado, além, é claro, de se valerem de um roteiro prévio que delimita as impressões e conclusões do cineasta/roteirista e, por isso, interfere sobremaneira na tão almejada verdade buscada por esse gênero cinematográfico.
Uma vez que o avanço da tecnologia permitiu ao longo do tempo que imagens de arquivo fossem acumuladas em maior número e que tomadas in loco pudessem ser feitas com mais facilidade graças a redução de peso das câmeras e a melhora também experimentada no processo de captação de áudio direto, o método da encenação, por conseguinte, cedeu espaço a uma toada mais comprometida com o alcance da mencionada verdade, o que fez pessoas reais passarem a ser filmadas em entrevistas e cenas do cotidiano, ocupando, assim, o lugar até então reservado aos atores que antes as representavam e quebrando, portanto, a invisibilidade de outrora sofrida por aquelas.
Dentro deste contexto, Francofonia – Louvre Sob Ocupação (França/Alemanha/Holanda, 2015) enaltece a atualmente pouco vista técnica da encenação, além de apresentar outra típica característica dos documentários clássicos produzidos nas primeiras décadas de existência do cinema, qual seja a inserção de comentários do realizador, nesse caso Aleksandr Sokurov, que utiliza sua narração em voz over como instrumento de divulgação do diagnóstico por ele realizado acerca da história do museu do Louvre fundado ainda no fim do século XVIII.
Destarte, ao discorrer sobre o Louvre e sua trajetória de resistência aos períodos de aversão à paz sofridos na Europa, em especial a II Guerra Mundial, Sokurov faz uma espécie de abordagem híbrida que trata tanto da influência do espaço sobre a coletividade, considerando que ali estão em exposição patrimônios diversos da história e da cultura mundial, bem como sobre o prisma individual dada a análise em tom de encenação da relação profissional estabelecida entre o francês Jacques Jaujard, diretor do museu durante aquela época de conflito, e o alemão Conde Wolff-Metternich destacado pelo Terceiro Reich para supervisionar o processo de assunção do Louvre pela Alemanha que, então, havia invadido o solo francês.
Neste diapasão, Sokurov indica que, embora de lados opostos da guerra, cada um daqueles homens colaborou para que as obras pertencentes ao Louvre fossem preservadas e mantidas vinculadas ao acervo deste, ao invés de deslocadas para a Alemanha como desejado pelo Führer. Tal relação de profissionalismo e desconfiança entre os dois é levada para as telas mediante interpretações competentes envoltas por uma eficiente direção de fotografia que não se exime de deixar a câmera se perder, no bom sentido, entre as alas do museu e seus muitos itens em exposição.
Em Francofonia, desta feita, não há espaço para gravações abertas nem entrevistas, pois:
– as figuras retratadas já faleceram;
– as imagens de arquivo, dado o longínquo cotejo temporal delimitado, se limitam a algumas poucas gravações feitas enquanto Paris era considerada uma cidade aberta.
Com efeito, Sokurov demonstra sua paixão pelo Louvre e pela arte fabricando imagens. Neste passo, até mesmo quando registra o tempo presente é possível perceber uma apropriação (ou criação?) oportuna do assunto, isso porque seu contato com um amigo capitão de navio preocupado com a possibilidade de perder para uma tempestade contêineres em cujo interior são transportadas obras de arte, inevitavelmente deixa a dúvida se tal conversa fora verídica ou se, ao contrário, fora arquitetada pelo cineasta no intuito de ilustrar a importância das artes¹ num patamar acima do senso comum que força o navegante a duelar até o último suspiro com as intempéries da natureza antes de se livrar dos volumes carregados e, desse modo, garantir a segurança da embarcação e da tripulação - circunstância essa que, de quebra, também serve para enfatizar como muitas produções artísticas de maneira parecida já se perderam nos mares principalmente em tempos de guerra.
O fato de talvez maquiar alguns eventos e encenar outros não representa, contudo, um demérito, uma vez que esse nada mais é que o modus operandi utilizado por Sokurov para transformar em imagens o anseio mais latente de Francofonia: homenagear não só o Louvre, mas a arte como um todo e os homens que muito fizeram por ela, o que inclui discutir o papel das guerras nesse contexto, eis que o filme não se escusa de salientar que considerável fração do acervo do museu é composta por troféus de batalhas conquistados em dominações de territórios arrasados e saqueados. Destarte, a maquiagem presente na composição imagética não impede que algumas verdades venham à tona – tal como perseguido pelo documentário enquanto gênero – mesmo que discorridas de forma poética e, por isso, visualizadas não necessariamente em oposição ao campo da ficção.
O olhar poético de Sokurov no bojo da linguagem documental decorre não só da forma emotiva com que constrói o filme e, particularmente, suas encenações, como também do excelente manuseio do formato digital que permite ao documentarista aproximar o espectador de telas e esculturas a ponto de fazer esse último conseguir sentir no imaginário a textura de tais objetos. Francofonia é um exemplo raro de longa-metragem que torna útil a plataforma digital para além de uma simples melhora na imagem. Sokurov proporciona uma experiência sensorial na qual o público consegue visualizar com impressionante nitidez as matizes dos afrescos, o que inclui perceber pequenos detalhes deixados pelos artistas entre suas pinceladas.
Em meio a tais qualidades, é de se lamentar, porém, a incômoda insistência com que Sokurov, tão logo as encenações são interrompidas, insere sua voz no documentário para, assim, externar pensamentos e diagnósticos. Com tanto a ser apreciado o silêncio por vezes colaboraria para tornar ainda mais completa a absorção, apreciação e análise do que é exposto. Tal como num museu.
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1.Em sentido semelhante Consuelo Lins e Cláudia Mesquita assim discorrem sobre uma das características do documentário moderno produzido no Brasil no decorrer dos anos 60: “A ‘voz do povo’ faz-se portanto presente, mas ela não é ainda o elemento central, sendo mobilizada sobretudo na obtenção de informações que apoiam os documentaristas na estruturação de um argumento sobre a situação real focalizada. As falas dos personagens ou entrevistados são tomadas como exemplo ou ilustração de uma tese ou argumento, este, muitas vezes, elaborado anteriormente à realização do filme, não raramente a partir de teorias sociais que forneciam explicações tidas como universalmente aplicáveis” (Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 21).

Ficha Técnica

Título Original: Francofonia, Le Louvre Sous L’occupation
Direção e Roteiro: Aleksandr Sokurov
Elenco: Aleksandr Sokurov, Andrey Chelpanov, Benjamin Utzerath, Francois Smesny, Jean-Claude Caër, Johanna Korthals Altes, Louis-Do de Lencquesaing, Peter Lontzek, Vincent Nemeth
Fotografia: Bruno Delbonnel
Montagem: Hansjörg Weißbrich
Trilha Sonora: Murat Kabardokov
Estreia no Brasil: 18.08.2016
Duração: 88 min.

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