Bingo – O Rei das Manhãs
Coleção
de Acertos
Bingo – O Rei das Manhãs (Brasil, 2017) alcança patamar de
qualidade parecido ao dos melhores títulos sobre ascensão e queda de um
personagem produzidos, por exemplo, pelo cinema norte-americano das últimas
décadas, dentre os quais podem ser citados Os
Bons Companheiros (EUA, 1990) e O
Lobo de Wall Street (EUA, 2013), ambos de Martin Scorsese, e Boogie Nights (EUA, 1997), de Paul Thomas Anderson, isso
porque, tal como nos filmes mencionados, Bingo
acerta ao se debruçar sobre o comportamento errático e anárquico de seu
protagonista sem deixar de dedicar especial atenção a figuras coadjuvantes
interessantíssimas em meio a uma muito competente reconstituição de época que
envolve tanto objetos, cenários e figurinos quanto aspectos comportamentais e da
cultura pop dos anos 80, compondo, desta feita, um quadro que amplia a
perspectiva micro referente a trajetória do homem por trás do personagem Bingo
(Bozo) para um viés macro capaz de servir de retrato de uma geração e/ou de um
período histórico no que tange sua efervescência e exageros culturais, incluída
aí a produção televisiva de então, resultado que enseja no espectador que
vivera tal década uma nostalgia tão saborosa quanto aquela experimentada em
2016 quando Stranger Things fora
lançado.
Dito isso, Bingo é o tipo de produção que denota o quão coletiva a atividade
cinematográfica é na medida em que nítido o padrão de eficiência empregado por
cada um de seus departamentos técnicos (montagem, direção de arte, etc.) e a
harmônica forma com que foram entrelaçados sem que um se sobrepusesse sobre o
outro. Nesse diapasão, o roteiro de Luiz Bolognesi sabe tirar proveito da
trajetória de Arlindo Barreto (ora rebatizado como Augusto Mendes) mediante uma
redistribuição dos fatos que altera a cronologia com que realmente ocorreram e
acrescenta algumas liberdades artísticas que privilegiam o conflito e o drama
sem deixar de lado o humor¹, alterações que podem desagradar os puristas, mas
que hão de ser louvadas em se tratando de uma obra de ficção² porque condensam
os eventos num conjunto de cerca de duas horas sem jamais escorregar no ritmo
nem deixar de ser vibrante, aspecto esse em que de grande utilidade se mostra a
experiência do agora cineasta Daniel Rezende como editor³, já que tal ofício
lhe permite, dessa vez com o auxílio do trabalho de montagem de Márcio Hashimoto, agregar agilidade a trama,
como visto principalmente nas sequências que reconstroem as gravações em
estúdio do programa de TV capitaneado por Bingo/Bozo, instantes esses em que
cortes secos entre o apresentador, sua diretora e demais participantes são
conciliados com movimentos de câmera frenéticos, dentre eles o “chicote”⁴, que fazem pulsar no público a
tensão experimentada durante tais filmagens quando, não raro, o palhaço
abandonava o roteiro do programa e/ou alguma criança o afrontava ao vivo
perante todo o Brasil, sequências nas quais o mesmo humor que o palhaço
utilizava para fugir das armadilhas bem como para atacar seus desafetos serve para
a plateia, aflita e embasbacada com o que assiste, vibrar, respirar e gargalhar
– dentro deste contexto, já que a análise enveredou também pelo assunto da
fotografia, cabe acrescentar que o longa-metragem possui, ao que tudo indica,
uma coloração calcada no padrão RGB⁵,
comumente usado nos televisores de tubo, o que agrega ao desenho de produção e
imagens do filme um ar retrô que se coaduna com as vestimentas, maquiagens e
cabelos vistos em tela e colabora para tornar imune a críticas a reconstituição
temporal pretendida.
Tamanho resultado, por certo, não
seria o mesmo caso os soberbos trabalhos de roteiro, edição, fotografia e
direção de arte não tivessem a seu dispor um elenco à altura, risco que Bingo passa longe de correr graças a
atores impecavelmente selecionados e muitíssimo bem dirigidos, dentre os quais
merecerem registro: o ótimo ator mirim Cauã Martins, Leandra Leal tirando de
letra um papel que poderia resultar insuportável em outras mãos, Augusto Madeira em participação irresistível,
Emanuelle Araújo que, voluptuosa, surge como um furacão em cena deixando um
gosto de quero mais face sua diminuta aparição (eis um dos sacrifícios feitos
pelo roteiro em nome da concisão), além de Ana Lúcia Torre que entrega ao lado
de Vladimir Brichta um tocante momento no qual ambos improvisam uma cena de
telenovela que representa, de um lado, o ocaso de uma estrela e, de outro lado,
o desejo de Arlindo Barreto pelo reconhecimento de seu nome e talento, meta,
como sabido, não alcançada tendo em vista que, apesar dos louros e popularidade
de seu trabalho junto às crianças, era obrigado por contrato a se manter no
anonimato. Tal sequência, vale dizer, permite constatar o quanto a atuação de
Brichta consegue ser ora intimista ora apoteótica - como quando sob o nariz do
palhaço - sem que oscilações no grau de técnica e de êxito ocorram, daí Isabela
Boscov afirmar que Bingo é “Interpretado
por Brichta num genuíno tour de fource”⁶. Tal como Augusto Mendes/Arlindo Barreto mergulhava de
cabeça em cada trabalho de atuação que lhe era confiado, Brichta agarra com
unhas e dentes a oportunidade de ser Bingo, por certo, sabedor de que esse
personagem detinha o condão de representar um divisor de águas em sua carreira.
Assim, o ator acerta em cheio sendo, como bem observa Suzana Uchoa Itiberê “engraçado, bizarro, terno, sensual,
decadente, carinhoso, cruel, tudo ao mesmo tempo, em um homem só”⁷, amálgama de emoções esse que há
de ser considerando ímpar, eis que não faz parte da rotina de lançamentos da
cinematografia nacional uma figura como Bingo de potencial tão complexo e tão
bem trabalhado por um script e por uma
respectiva proposta de direção.
Aliás, é possível concluir que Bingo representa o tão almejado e pouco
comum caso de produto cinematográfico voltado a divertir sem abrir mão de ser denso
e de respeitar a inteligência da plateia adulta, circunstância que a mesma
Isabela Boscov já denunciava como imprescindível às produções pátrias nos
seguintes termos:
“A
maioria da ficção cinematográfica nacional agora se divide entre comédias de
uma vulgaridade que dói nos dentes, ou dramas de uma pretensão que faz mal ao
fígado. Filmes que são craques na narrativa, envolventes de assistir e ainda
dão uma chacoalhada na plateia e a provocam a rever o que pensa, como fez Tropa de Elite [...], esses
meio que caíram em desuso aqui. Parte do público prefere apostar na certeza do
tipo de entretenimento a que a televisão a habituou; outra parte quer se
autocongratular por sua superioridade intelectual, ideológica ou seja lá de que
tipo for”⁸.
Bingo contagia com sua trilha musical, faz rir mediante o jeito
tresloucado de seu protagonista, proporciona uma viagem saudosista aos anos 80,
mas não se contenta ‘só’ com isso. Todos esses são fatores encaixados em seu
devido lugar e que funcionam a contento para servir de esteio a uma estrutura
narrativa com todos os seus pormenores e entrelinhas, daí não haver concessões
para agradar nem para abranger uma faixa etária maior de público. Interessa a
Daniel Rezende e equipe o comprometimento com a história por vezes trágica, por
vezes cômica a ser contada e os conceitos a ela inerentes, o que explica a
exitosa sedução exercida sobre o espectador que permanece vidrado numa jornada
ladeira abaixo, contudo, inebriante.
Se uma coisa pode ser questionada
quanto ao roteiro de O Rei das Manhãs
é a total falta de menção a Sílvio Santos, proprietário da TVS/SBT e figura
emblemática da televisão brasileira, ausência que, embora sentida, não chega a
ofuscar os inúmeros acertos em contrapartida apresentados como, por exemplo, a
não determinação de um marco inicial para o uso de drogas pelo protagonista, o
que lhe afasta do papel de vítima da fama repentina e lhe atribui, sem
julgamentos exacerbados, a devida responsabilidade pelo rumo dado a sua vida
pessoal e profissional, além da forma sucinta com que expõe a conversão do mesmo
a religião evangélica e, desse modo, se esquiva do perigo de insinuar que a fé
lhe trouxera redenção. Em outras palavras, a volta por cima do homem não é
sugerida, ficando no ar um gosto de derrota apenas amenizado pelo recurso por
aquele encontrado para seguir adiante: o credo religioso, conclusão, portanto,
madura e que não torna a trajetória corrosiva do personagem uma fantasia tola e
divorciada por completo da realidade.
Além de ser o tipo de filme que o
espectador costuma guardar com carinho em seu íntimo, resultado, há de se convir,
cada vez mais escasso na cinematografia não apenas nacional, Bingo dispõe - graças a vasta coleção de
acertos apresentada - de atributos suficientes para ocupar lugar de destaque na
história do cinema brasileiro ao lado de outras celebradas cinebiografias como Lúcio Flávio – O Passageiro da Agonia
(1977), Memórias do Cárcere (1984), Santiago (2007), Elena (2012) e Somos Tão Jovens (2013). Tal previsão consiste em espécie de
resultado pertencente ao futuro moldada a partir do reconhecimento que no
presente e ao longo dos anos um filme segue recebendo; desta feita, permaneçamos
aplaudindo o palhaço!
___________________________
1. Neste aspecto, sugere-se a leitura do texto Bingo x Bozo: o que é real e o que é ‘palhaçada’ no filme, disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/e-tudo-historia/bingo-x-bozo-o-que-e-real-e-o-que-e-palhacada-no-filme/.
2. O diretor Daniel
Rezende explica: “Quando se trata de uma
história real, a não ser que seja um documentário, não tem como não haver
modificações [...]. Embora a essência
seja fiel e respeitosa à vida do Arlindo, fundimos personagens, acontecimentos,
mudamos a ordem de fatos e inventamos coisas” (Revista Preview. Ano 8. ed. 95. São Paulo: Sampa, Agosto de 2017. p. 18).
3. Daniel Rezende foi
responsável pela edição de Cidade de Deus
(trabalho pelo qual foi indicado ao Oscar), Tropa
de Elite 1 e 2, Diários de Motocicleta, A Árvore da Vida, Ensaio
Sobre a Cegueira, Robocop
(remake), dentre outros.
4. O chicote consiste
num movimento rápido da câmera
que torna as imagens localizadas entre o início e o
fim do movimento (intermediárias) turvas e quase não identificáveis.
5. A sigla RGB diz respeito as cores vermelho (Red), verde (Green) e azul (Blue) reunidas num sistema para reprodução de outras cores em aparelhos eletrônicos como a televisão.
6. "Bingo - O Rei das Manhãs: O melhor desde 'Cidade de Deus'". Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/isabela-boscov/bingo-o-rei-das-manhas/. Acesso em 29.09.2017.
7.
Revista Preview. Ano 8. ed. 95. São Paulo:
Sampa, Agosto de 2017. p. 10.
8. “O Cidadão Ilustre”. Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/isabela-boscov/o-cidadao-ilustre/.
Acesso em 29.08.2017.
FICHA TÉCNICA
Direção: Daniel Rezende
Roteiro: Luiz Bolognesi
Produção: Caio
Gullane, Fabiano Gullane
Elenco: Vladimir
Brichta, Leandra Leal, Ana Lúcia Torre, Emanuelle Araújo, Tainá Muller, Cauã
Martins, Augusto Madeira, Domingos Montagner, Pedro Bial, Soren Hellerup, Ricardo Ciciliano,
Fotografia: Lula Carvalho
Direção
de Arte: Cássio Amarante
Edição: Márcio Hashimoto
Trilha Sonora: Beto Villares
Estreia: 24.08.17
Duração: 113
min.
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