David Lynch: A Vida de um Artista



Recorte Insuficiente

O título do documentário David Lynch: A Vida de um Artista (EUA/Dinamarca, 2016) soa equivocado, tendo em vista que o recorte efetuado, de tão limitado, deixa a sensação de ser esse, na verdade, uma espécie de episódio piloto de algum seriado sobre o diretor. Neste sentido, a produção se dedica durante toda sua primeira hora de duração a mostrar a veia de artista plástico que pulsa em Lynch desde sua adolescência, o que por si só não seria um problema caso para sua faceta cineasta fosse dado semelhante espaço ao invés dos exíguos trinta minutos finais para tanto reservados. Essa distribuição desproporcional de tempo entre tais aspectos da abordagem é agravada pelo fato de os citados 2/3 iniciais de projeção passarem pela tela de forma arrastada e um tanto tediosa, sendo o fôlego do filme e a empatia do espectador recuperados, já tardiamente, apenas no terço final quando o documentário envereda pelo início da carreira cinematográfica de Lynch e pelos bastidores de seu longa-metragem de estreia Eraserhead (EUA, 1977).
Destarte, David Lynch: A Vida de um Artista se revela prolixo e vago quanto ao trabalho do artista plástico, na medida em que a despeito de todo o tempo dedicado a tal assunto nenhuma análise sobre o conteúdo de suas telas é feito, além de sucinto em demasia no que tange a exitosa trajetória de Lynch pela sétima arte. Dentro deste contexto, algo que colabora para tornar tão sorumbática a hora inicial do título é a total falta de vontade de desconstruir a persona enigmática mostrada pelo diretor e que por vezes parece se confundir com as figuras estranhas e, não raro, pouco compreensíveis presentes em sua filmografia. No lugar de buscar a verdade real como, a priori, o gênero documentário tende a fazer, o trabalho dos diretores Jon Nguyen, Rick Barnes e Olivia Neergaard-Holm opta por manter em torno de Lynch uma aura excêntrica, daí serem recorrentes as tomadas em que o cineasta olha fixamente para o nada dando longas tragadas em seus cigarros, personificação essa da figura do artista, há de se convir, caricata e que erroneamente parece lhe colocar alguns degraus acima dos seres comuns. Esse questionável enquadramento de fã realizado pelo trio de diretores se torna latente nos momentos em que no mesmo ateliê onde se debruça sobre seus quadros e esculturas Lynch por vezes também interage com sua filha caçula, uma criança que devido a pouca idade requer, por óbvio, cuidados intermitentes, rotineiros que a narrativa faz contrastar com o cotidiano de um homem focado em seus projetos artísticos; assim, por mais que nesses instantes faça-se mister romper com o estereótipo, descortinar a fachada e, desta feita, revelar o ser humano e o pai comum a qualquer outro que Lynch aparenta ser, o documentário, ao contrário, insiste em tratá-lo como alguém afastado da normalidade e da ordinariedade.
 Ao que tudo indica, na concepção do trio de diretores do documentário, o sucesso profissional alcançado por David Lynch parece ter lhe deixado imune a preocupações mundanas, daí que contas a pagar, filhos a criar são perturbações que não mais lhe afligem; hoje o artista pode se manter alheio as coisas miúdas do dia a dia e permanecer perdido em seus próprios pensamentos. Aliás, a dificuldade enfrentada no início da vida adulta para satisfazer os anseios artísticos e ao mesmo tempo dispor de cabedal financeiro para sustentar a si e a seus próximos é um assunto que surge na derradeira meia hora de duração do filme junto com comentários sobre os preparativos para as filmagens de Eraserhead, ocasião em que o então aspirante a cineasta enfrentava o dilema de seguir adiante com seus planos e ambições artísticas ou assumir um emprego qualquer que lhe permitisse custear as despesas decorrentes de uma gravidez não planejada que ensejou o nascimento de sua primeira filha. O surgimento dessas amarras e responsabilidades ameaçava a liberdade do homem até então acostumado apenas a se preocupar em criar, em fazer arte, circunstância agravada pelas exigências daqueles que não lhe davam escolha e lhe impunham o dever de, como dito alhures, abandonar sua vida de artista em prol de um trabalho que lhe garantisse remuneração capaz de bancar a recém-montada família. Tal olhar para o passado traz à tona um homem à época emparedado, angustiado, porém, ainda assim, determinado e dedicado a fazer seu primeiro longa-metragem, sendo esse trecho o único breve e saboroso exemplo de desconstrução do personagem David Lynch existente no documentário - dito isso, é lamentável que tal período da vida do diretor seja tratado de maneira tão rápida, ainda mais quando sabido é que toda a metáfora do enredo e do visual de Eraserhead versa justamente sobre tal conflito interno do diretor.
Se considerada for a magnitude da filmografia de David Lynch, é inevitável concluir que o recorte feito pelo documentário está aquém daquela. Fosse esse um capítulo primeiro de uma série, como outrora cogitado, estar-se-ia no aguardo de promissores novos episódios, contudo, em não sendo esse o caso, resta incompleta a abordagem da “Vida de um Artista” proposta no subtítulo do trabalho, afinal, a elipse construída entre as primeiras manifestações artísticas de Lynch seja nas artes plásticas seja no cinema e seu status quo atual tem em seu meio um vácuo que em última instância serve somente para reforçar o quê enigmático do personagem. O documentário, portanto, se vale dessa caricatura, segue alimentando-a e talvez no intuito de mantê-la intacta investiga somente os primeiros passos do artista sem almejar ir além e averiguar o que mais atormentaria e/ou instigaria aquele homem a ponto de lhe permitir criar obras do quilate de Coração Selvagem (1990) e A Estrada Perdida (1997). A desconstrução da persona, tão defendida nessa resenha, por certo, permitiria compreender mais sobre as obras posteriores do diretor, a origem de suas respectivas ideias e principalmente demonstraria que David Lynch vai além de Eraserhead, vai além de seus quadros e, sobretudo, vai além da imagem do artista de comportamento diferente ao do resto da humanidade. O fracionamento não faz jus a Lynch, um artista que para ser entendido em sua plenitude há de ser necessariamente escrutinado em meio ao conjunto completo de sua obra, sob risco de eventuais seleções resultarem em estudos parciais e rasos tal como o caso em comento.
   
FICHA TÉCNICA

Título Original: David Lynch: The Art Life

Direção: Jon Nguyen, Rick Barnes e Olivia Neergaard-Holm
Trilha Sonora: Jonatan Bengta
Estreia: 31/08/17 (Brasil)
Duração: 88 min.

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