Sem Amor


Irresponsabilidade, Desamor e Perdas

Ambientado na Rússia atual, Sem Amor (Rússia, 2017) se debruça sobre o drama de um casal em processo de separação cujo filho menor de idade acaba por desaparecer, desenvolvimento esse que, embora enverede pelo caminho da trama investigativa, não enseja a conclusão de que o filme abandona um gênero cinematográfico em benefício de outro, visto que em momento algum o suspense deflagrado deixa de ser pautado pelos problemas de relacionamento que afetam os personagens centrais e coadjuvantes.

Neste passo, salta aos olhos o egocentrismo de seres preocupados exclusivamente com seu bem-estar e sem o mínimo de maturidade para entender necessidades alheias as suas, viés esse em que se destaca o caso de Alyosha, criança cujos genitores, Boris e Zhenya, tentam dela se livrar sem qualquer zelo, explicitando dessa maneira a urgência com que almejam encerrar em definitivo o malfadado capítulo de suas vidas concernente a família por eles constituída.
A alienação dos adultos quanto a capacidade de um divórcio irresponsavelmente planejado arruinar a infância e inocência de uma criança desemboca em uma antológica e impactante cena marcada pelo pranto silencioso do garoto que, escondido atrás de uma porta, ouve pai e mãe discutirem sobre qual o jeito mais rápido e fácil de descartá-lo. Acachapante ponto de virada do roteiro, a sequência, além de desmascarar por completo aqueles dois, serve de elemento propulsor para a inserção do suspense na trama face a consequente fuga do menor que, aliás, tarda a ser percebida pelos pais, tamanho o descaso desses.
Dentro deste contexto, não é difícil crer na existência de seres tão repugnantes como os que são mostrados pelo longa-metragem, resultado obtido graças a determinados momentos de humanização que lhes permitem ser enxergados não como demônios exclusivos da ficção e sim como figuras do dia a dia com as quais é comum o espectador conviver – como adiante será aprofundado. Contribui também para que tantos defeitos não soem exagerados a qualidade dos diálogos que, a cada discussão, despejam desabafos, acusações e ofensas, conseguindo, assim, ilustrar com exatidão a linguagem do desamor que, uma vez universal, afasta do enredo a pecha de história tipicamente russa, a despeito de pontuações específicas sobre como ainda hoje a Revolução Russa reverbera na política, na economia e na sociedade daquele país através da sufocante presença do Estado a ditar modos de conduta na seara íntima dos indivíduos¹, o que, dentre tantos efeitos, torna anacrônica a nação mesmo que inegável sua relação de dependência perante avanços tecnológicos responsáveis por moldar uma turba de idiotas – crítica que, é bem verdade, assume um raio de abrangência global já que permanecer absorto frente a um smartphone, bem como não se sentir capaz de iniciar uma refeição sem antes fotografar o prato não são comportamentos exclusivos dos cidadãos russos².
O excesso de insatisfação, frustração e ressentimento manifestado, sobretudo, pelos protagonistas, por certo, poderia tornar a obra cansativa aos olhos do público, perigo que o diretor Andrey Zvyagintsev contorna com inteligência seja ao trabalhar subtemas pensados para funcionar como zonas de respiro igualmente reflexivas, seja ao não atribuir de forma exclusiva sobre tais personagens o egoísmo e a falta de empatia, tal como percebido nos exemplos:
- da mãe de Zhenya, cujas posturas erráticas e de menosprezo pela filha acabam sendo por essa última replicadas na criação do próprio filho;
- da nova parceira de Boris que, grávida, pouco se importa com o sumiço do rebento deste e insiste em questionar a que horas voltará para casa o companheiro que, não à toa, segue insatisfeito, tal como no casamento anterior, por ter ao lado alguém incapaz de ver os próprios erros e de indagar se o consorte é feliz;
- da jovem, residente em outro país, que ao ser por meio remoto questionada pelo saudoso pai sobre quando voltará a visitar a Rússia, responde, enfática, que nada mais tem a fazer em tal lugar.
Desta feita, ao distribuir desvios de caráter também entre os personagens coadjuvantes, Zvyagintsev evita que sobre os protagonistas paire um julgamento impiedoso, afinal, esses nada mais são que frutos do meio, isto é, reflexos de uma sociedade doente, o que ajuda a compreender, mas não justificar, alguns de seus atos.

Além dos méritos listados, outro fator há de ser lembrado enquanto responsável pelo êxito da narrativa: as elegantes ferramentas estéticas utilizadas por Zvyagintsev na condução do caos por ele arquitetado, no que sobressaem os longos planos marcados por movimentos de câmera que salientam o peso emocional das falas e das irretocáveis atuações, tal como visto em cena de eficiente teatralidade na qual Zhenya (interpretada com precisão por Maryana Spivak) num instante entre cópulas declara seu amor ao novo namorado e confessa que no passado casara sem estar apaixonada, falta de emoção que reconhece ter se estendido ao período da gravidez e ao rebento fruto de uma união desprovida de carinho – neste diapasão, é curioso como, embora não tendo amado o marido, Zhenya ainda então nutre enorme rancor por ele, não hesitando em insultá-lo nem a dele falar mal quando e para quem quiser ouvir, o que parece revelar uma raiva proveniente não do fracasso dele em lhe dar felicidade (algo, há de se convir, um tanto impossível dada a falta de disponibilidade dela para tanto), mas sim por ter o mesmo se adiantado àquela ao se envolver com outra pessoa, o que, tudo indica, soou-lhe como uma derrota em função de ter perdido tempo e chance de ser a primeira a cruzar a linha de chegada, isto é, a jogar tudo para o alto e se permitir um relacionamento novo. Logo, é mais por ego ferido que Zhenya faz tanta questão de incomodar Boris que se deixa envolver numa teia de injúrias e tal como ela acaba ignorando o filho que, deixado à míngua, se torna a vítima principal do matrimônio tanto em sua constância quanto em seu término.
Outrossim, não obstante todas as lágrimas derramadas, é inevitável pensar que a consternação demonstrada pelos pais em virtude do desaparecimento da criança parece decorrer menos do desespero pela perda de um ente querido e mais de um sentimento de preocupação sobre como serão a partir de então vistos por aqueles cujas opiniões lhes interessam, daí Pablo Villaça acertar ao escrever que Sem Amor “é uma obra mergulhada em dor e arrependimento, mas que compreende que há pessoas incapazes de mudar mesmo depois das mais terríveis experiências”.
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1.     "’O que é a União Soviética? É a Rússia, com a diferença de que antes se chamava de outra maneira’, afirmou Vladimir Putin, o líder que tenta devolver aos russos o orgulho perdido após o traumático fim do Estado totalitário comunista.
[...] ignorando as crescentes críticas do Ocidente às suas tendências autoritárias [...] Putin aproveitou a desculpa terrorista para implantar uma verticalização do poder na qual todas as decisões dependem de Moscou, a despeito do federalismo.
O retrocesso nas liberdades democráticas foi denunciado pelo último dirigente soviético, Mikhail Gorbachev, que acusou o presidente de se transformar em "um novo czar", comparando o partido do Kremlin com o Partido Comunista da União Soviética (PCUS) por seu monopólio do poder.
[...] Putin, um reconhecido nostálgico da URSS, afirma que sua iniciativa de criar uma União Eurasiática não é uma reencarnação do colosso soviético, mas o Ocidente segue sem confiar no primeiro- ministro russo, que pode se perpetuar no poder até 2024” (Rússia defende herança da URSS com unhas e dentes. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/europa/russia-defende-heranca-da-urss-com-unhas-e-dentes,44fa2352316fa310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html. Acesso em 10/04/2018).
2.     Conforme observa Pablo Villaça: “Loveless faz um comentário certeiro sobre a necessidade contemporânea de pintar um retrato idílico da própria existência nas redes sociais mesmo quando a realidade encontra-se em total desarranjo” (versão integral do texto disponível em http://cinemaemcena.cartacapital.com.br/critica/filme/8410/sem-amor; acesso em 24.03.18).

Ficha Técnica

Título Original: Nelyubov

Direção: Andrey Zvyagintsev
Roteiro: Andrey Zvyagintsev, Oleg Negin
Produção: Gleb Fetisov, Sergey Melkumov
Elenco: Aleksandr Sergeev, Aleksey Fateev, Aleksey Rozin, Anastasiya Stezhko, Andris Keiss, Anna Gulyarenko, Daria Pisareva, Evgeniy Venediktov, Evgeniya Dmitrieva, Irina Vilkova, Kristina Isaykina, Lyubov Sokolinskaya, Maksim Stoyanov, Maryana Spivak, Matvey Novikov, Natali Starynkevich, Natalya Vinokurova, Polina Aug, Sergey Badichkin, Sergey Borisov, Tatyana Khramova, Tatyana Ryabokon, Varvara Shmykova, Vladimir Vdovichenkov, Yanina Hope, Yuriy Kasmynin, Yuriy Mirontsev
Fotografia: Mikhail Krichman
Trilha Sonora: Evgueni Galperine, Sacha Galperine
Montagem: Anna Mass
Estreia: 01.06.2017
Duração: 127 min.

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