No Intenso Agora
A Voz de Deus
Tal como fizera em Santiago (Brasil,
2007), o diretor João Moreira Salles constrói No Intenso Agora (Brasil, 2017) pela via da junção de imagens de
arquivo – dessa vez captadas por outras pessoas. Dito isso, enquanto no
primeiro caso o material bruto lhe permitia - ainda que indiretamente - refletir
acerca da própria família bem como sobre sua forma de filmar um documentário em
meio a pretensa busca pelo real que define o gênero, no segundo caso o cineasta
aparenta enveredar novamente por assuntos caseiros ao analisar as gravações
amadoras feitas por sua mãe durante uma viagem a China na década de 60, impressão
que, entretanto, não tarda a ruir já que logo adiante é possível perceber que a
introdução de cunho íntimo apresentada não passa de um pretexto utilizado pelo
documentarista para, tal qual um Eric Hobsbawm em versão fílmica, discorrer
sobre a ‘Era dos Extremos’ no que tange especificamente os movimentos
político-estudantis deflagrados no período supracitado em países como França,
Brasil e Tchecoslováquia.
No intuito de costurar a narrativa
Salles preenche a produção de ponta a ponta com narração em voz over, outro recurso que, vale lembrar, é
também marcante em Santiago¹, trabalho esse cujo teor subjetivo
acaba por justificar que Salles faça tantas observações segundo sua ótica,
afinal, ninguém melhor que ele para mensurar principalmente os erros cometidos
quando dos dias em que entrevistara o antigo mordomo de seus pais, proximidade
que também corrobora a necessidade de inserção de seus pensamentos sobre o que
representara a presença daquele empregado em seu seio familiar. Trata-se, desta
feita, do olhar e da fala resultantes do convívio e que só podem de fato ser
manifestados por quem gozara de tal experiência, conclusão que não se aplica a No Intenso Agora, obra na qual Salles
resgata uma tradição sessentista e, por conseguinte, datada concernente a
utilização da voz de Deus sobre as imagens. Em outras palavras, o
autor/realizador, do alto do seu intelecto, acrescenta às cenas projetadas suas
interpretações e diagnósticos quanto ao intervalo histórico abordado e as
problemáticas a ele atinentes sem deixar para o espectador qualquer brecha para
tecer sua compreensão particular a respeito do que vê, prática que Cláudia
Mesquita e Consuelo Lins avaliam nos seguintes termos:
“A
forma do documentário brasileiro nos anos 60 é [...] bastante híbrida,
dividindo-se entre o projeto de ‘dar a voz’ (através de entrevistas) e a
proposta de totalizar e interpretar situações sociais complexas, manifestada
sobretudo pelo comentário do narrador, pelo uso da música, pelas entrevistas
com especialistas e autoridades, e também pela montagem trabalhada de modo
retórico. [...] As implicações políticas do cinema Novo parecem ter criado uma
situação especial para o documentário, que continuou recorrendo ‘à voz do
saber’ para construir com clareza os significados sociais e políticos visados
pelos filmes. Portanto, a narração explicativa perdura e expressa um modelo bastante característico
da primeira metade dos anos 60 no Brasil: o do cineasta/intelectual que se
julga no papel de intérprete que aponta problemas e busca soluções para a
experiência popular”².
Dentro deste contexto, um exemplo de entendimento absoluto da imagem pelo
diretor é encontrado na sequência em que um(a) garoto(a) é filmado(a) dando os
primeiros passos em uma calçada, ocasião em que sua babá sai do quadro de
filmagem, concentrando-se a câmera em seguida apenas na criança, situação que
Salles se apressa em rotular como ilustrativa da estratificação social que
assola o país, pois, segundo sua visão, não caberia à funcionária negra fazer
parte da memória da família do patrão através de tal registro, explicação que,
embora possa ser correta, não se mostra nada cartesiana na medida em que ignora
toda e qualquer outra causa responsável pelo gesto da cuidadora. E é assim,
emendando conclusão atrás de conclusão, que Salles entrega um produto que
sujeita a plateia a uma condição de passividade, eis que castigada a ouvir,
ouvir e ouvir sem, como outrora salientado, ter a reserva de espaço cabível para
alcançar suas próprias interpretações.
Não fosse o bastante, o saldo - que
já era insatisfatório e enfadonho ante as razões apontadas - consegue ser piorado
quando, próximo ao término, Salles busca retomar o gancho inicial do filme e
novamente se dedica a comentar o encantamento de sua genitora pela China,
estratégia voltada a servir como encerramento de um ciclo narrativo que por si
só não seria discutível caso não exacerbasse o viés ideológico de maneira tão
execrável. Explique-se: Salles aproveita o referido ato final do longa-metragem
para exercer uma derradeira e desmedida defesa dos levantes
socialistas/comunistas, o que faz mediante o enaltecimento da figura do poeta
Mao Tsé-Tung, homenagem absurdamente equivocada que faz vista grossa ao fato de
ser aquele o maior e mais sanguinário ditador do Oriente surgido até então, responsável
pelo extermínio de 77 milhões de compatriotas vitimados por fome, torturas e fuzilamentos³.
Lastimável.
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1. Leia mais sobre Santiago em http://setimacritica.blogspot.com.br/2014/04/jogo-de-cena.html.
2. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 2011. p. 22.
3. Neste sentido, sugere-se a leitura disponível em: https://super.abril.com.br/historia/qual-ditador-matou-mais-em-todos-os-tempos/
. Acesso em 02.05.18.
FICHA TÉCNICA
Direção e Roteiro: João Moreira Salles
Produção:
Maria Carlota Fernandes Bruno
Trilha Sonora:
Rodrigo Leão
Montagem: Eduardo
Escorel, Lais Lifschitz
Estreia: 09/11/2017
Duração: 127 min.
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