Leaving Neverland


 Ode a Empatia

É admirável a coragem da HBO¹ em, por meio de Leaving Neverland (EUA/Reino Unido, 2019), mexer com um assunto tão polêmico como a acusação de pedofilia contra um homem morto, ainda mais levando em conta que esse alguém é Michael Jackson, astro ainda hoje idolatrado mundo afora por uma legião de fãs. Neste passo, uma vez decidida a mexer em tal vespeiro, a produção não fica em cima do muro e assume por completo o lado das vítimas, ao passo em que se dedica a criar no público empatia por elas, bem como a detalhar o que levou as mesmas a silenciarem e/ou negarem durante tantos anos o abuso hoje por elas reconhecido. Para tanto, o filme não se preocupa em ser sintético e durante quase quatro horas faz um longo percurso no qual primeiramente traça um perfil da família de cada um dos acusadores para em seguida esmiuçá-los no que tange a admiração neles despertada ainda na infância pelo rei do pop, a aproximação com este último, o deslumbramento de seus parentes com a amizade de repente firmada com uma celebridade de tal calibre e a forma como os atos de violência sexual por aqueles experimentados tornaram dolorosas suas trajetórias mesmo quando já adultos, já que, como bem observa Anna Muylaert: “por maior que fossem seus esforços, não conseguiam construir nada sólido, indo de uma crise a outra, de uma depressão a outra, como se estivessem tentando erigir sua vida sobre terreno arenoso”².

No que tange a relação dos familiares das vítimas e a vista grossa por eles feita quanto a atípica aproximação entre um homem adulto e meninos com os quais fazia questão de dormir no mesmo quarto, chama atenção de maneira positiva o modo como o documentário consegue se esquivar de ser condescendente ou, por outro lado, julgador das mães que um dia permitiram que seus filhos passassem a pernoitar na cama do cantor, assunto que novamente A. Muylaert assim comenta:
“Como as mães não viram? Como elas deixaram? Fica claro que diante do poder de Michael Jackson na época nada era impossível, ou tudo era possível. O fascínio exercido pelo cantor nas crianças, nas famílias, nas mães e no público autorizava tudo. Até deixá-lo dormir com dezenas de meninos em sua cama – e, mesmo depois de algumas denúncias de pedofilia, contra as quais Michael pagou dezenas de milhões de dólares, as mães continuavam “não desconfiando” de nada”³.
A despeito dos méritos elencados, um problema, há de se convir, atrapalha Leaving Neverland: no intuito de defender as vítimas – cujos relatos, frise-se, soam deveras críveis, eis que estruturados com riqueza de detalhes dentro de um arco que permite compreender a oscilação de comportamento dos molestados ao longo do tempo – a obra deixa de abordar as acusações que são contra aquelas feitas, assim, não as indaga sobre seus malsucedidos processos indenizatórios ajuizados contra o espólio de Michael Jackson nem sobre a pecha de mentirosos interessados em lucro que muitos lhes atribuem. Ao preferir esconder debaixo do tapete tais controvérsias ao invés de igualmente levantá-las, o longa-metragem deixa de galgar degraus e reforça o discurso daqueles que atacam as vítimas que, desta feita, deixam de gozar a oportunidade de se defender contra seus detratores, possibilidade que, por certo, ofereceria uma visão mais abrangente sobre aquelas primeiras, caminho esse que, a depender da análise de cada espectador, poderia tanto plantar uma dúvida quanto a veracidade das histórias narradas quanto corroborar as mesmas, cenário que faria do filme não apenas uma peça de denúncia como também uma experiência cinematográfica completa.
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1.Em razão do lançamento do documentário, a emissora se tornou alvo de processo no qual o espólio do artista pleiteia indenização de US$ 100 milhões. Neste sentido, sugere-se a leitura do artigo disponível em http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-146590/. Acesso em 18.05.19.

2.     O carrossel de emoções de “Leaving Neverland”. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/secoes/colunistas/o-carrossel-de-emocoes-de-leaving-neverland. Acesso em 08.05.18.
3.     Op. Cit.


Ficha Técnica

Direção e Fotografia: Dan Reed
Produção: Dan Reed, Owen Phillips  
Montagem: Jules Cornell
Trilha Sonora: Chad Hobson
Estreia: 16/03/19                
Duração: 240 min.

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