O Farol / A Hora do Lobo

Expressionismo e Surrealismo

 Não bastasse ter em comum nas suas narrativas os dramas de homens que enlouquecem no âmbito de ilhas solitárias O Farol (Canadá, 2019) e A Hora do Lobo (Suécia, 1968) assemelham-se também pela forma com que esteticamente se filiam ao cinema expressionista valendo-se, ainda, de certos elementos do estilo surrealista.

No longa-metragem de Ingmar Bergman tem-se a figura de um artista assombrado por fases diversas de seu passado, o que inclui a criança interior ao que tudo indica traumatizada que ele insiste em aniquilar, bem como os fantasmas de um relacionamento amoroso anterior tão conturbado quanto mal resolvido. Feito de joguete por burgueses que fingem valorizá-lo, mas que estão mais interessados em contra ele executar um jogo sádico, o protagonista vai perdendo a cabeça a ponto de se ver perseguido por imagens aterrorizantes nas quais é assediado por seres escabrosos cujos comportamentos, não se há de descartar, podem até nem ser tão reprováveis, dada a possibilidade daquilo que é projetado na tela não passar de elucubrações criadas pela própria figura central, daí Michael Tapper comentar:

“Bergman [...] sugere que [o protagonista] Johan não merece confiança enquanto narrador. Seus algozes possuem qualidades sobrenaturais e um conhecimento incomum de sua psique que, em última instância, se revelam como projeções das forças destrutivas no interior do artista”¹.

Em O Farol o isolamento é ainda mais excruciante já que em seu enredo dois homens vivem à própria sorte sem contato algum com qualquer outra alma que não seja a dos animais que frequentam a ilha na qual exercem o ofício de faroleiros. Neste passo, a dificuldade de relacionamento entre tais figuras é estimulada por atos de arrogância e de humilhação praticados pelo veterano contra o aprendiz, o que acirra os ânimos e cede espaço para a violência que de verbal torna-se física à medida que os dias de solidão se estendem e visões fantásticas passam a perturbar o novato.

Tratam-se, portanto, de obras que discorrem sobre ser levado ao limite em meio ao vazio. Sem perspectivas, atormentados por coisas de outrora das quais buscam fugir os protagonistas de cada título perdem o juízo paulatinamente em ambientes nos quais a harmonia é atacada às vezes por eles próprios².  Aparentemente simples, os respectivos roteiros são enriquecidos em ambos os casos pela linguagem expressionista na qual, com as devidas ressalvas, apenas os personagens centrais parecem existir “sendo os outros na maioria das vezes projeções distorcidas da mente do herói [ficando] [...] todo o cenário [...] a serviço da explicitação emocional” (CÁNEPA, p. 61)³, ao passo que a iluminação torna-se “recurso expressivo de grande poder modelando os traços fisionômicos a partir de focos baixos ou laterais” (CÁNEPA, p. 62) recursos que, por fim, denotam as feições grotescas dos personagens.

 Destarte, as duas produções apresentam elementos símbolos do cinema expressionista, quais sejam: “a ligação com o gótico, os efeitos dramáticos de sombra e luz e [...] a curiosidade pelo fantástico” (CÁNEPA, p. 64-5) construindo assim um mundo doloroso e não natural que se coaduna com a proposta expressionista de traduzir visualmente conflitos emocionais” (CÁNEPA, p. 67).

Robert Eggers, diretor de O Farol, investe fundo, por exemplo, na iniciativa de compor cenas estáticas que parecem pinturas vivas, como costumavam fazer os cineastas expressionistas, vide a lição de Laura Loguércio Cánepa, a saber:

“personagens e objetos se transformavam em símbolos de um drama eminentemente plástico causando, às vezes, a impressão de que uma pintura expressionista havia adquirido vida e começado a se mover [configurando desse modo] [...] uma estratégia de alteração plástica da realidade com vistas a intensificação do drama, numa espécie de deformação expressiva” ⁴.

As experiências visuais expressionistas buscavam “captar estados de alma [e] [...] reproduzir imagens do inconsciente dos personagens” (CÁNEPA, p. 72), o que se vislumbra nos trabalhos de Bergman e Eggers, afinal, são os mesmos norteados por pessoas que levadas a um estado de insanidade motivado pela própria frustração agem de maneira destrutiva contra si e/ou contra qualquer forma de autoridade e opressão.

Além de se valerem dos fundamentos expressionistas, as obras em comento, como já dito, ainda flertam com o surrealismo enquanto modo de representação das deterioradas condições mentais dos personagens, experimentação que abre alas para devaneios nos quais realidade e imaginação são misturadas em meio a metáforas e simbologias não raro relacionadas a desejos sexuais insatisfeitos, daí os filmes também funcionarem como “um jogo livre da mente e do subconsciente, expressando o irracional, o caótico, a neurose tal como fazem as obras surrealistas por excelência.

Ao aglutinarem elementos das duas escolas cinematográficas citadas O Farol e A Hora do Lobo inevitavelmente aderem ao nicho do cinema autoral que, pouco popular, tende a não agradar considerável parcela do público. Dito isso, felizardos aqueles que se deixarem seduzir por manifestações culturais tão enriquecedoras.

___________

1.    SCHNEIDER, Steven Jay (org.). 1001 filmes para ver antes de morrer. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. p. 494.

2.    Neste diapasão, merecem elogios as excepcionais performances de  Max von Sydow e Willem Dafoe que entregam talvez os melhores desempenhos de suas longas carreiras.

3.    Cánepa, Laura Loguércio.  Expressionismo Alemão. In MASCARELLO, Fernando (org.). História do Cinema Mundial. 6 ed. Campinas, SP: Papirus, 2010.

4.    Op. Cit. p. 70.

5.    Trecho extraído da lição sobre surrealismo dada por Ronald Bergan em ...Ismos – Para Entender o Cinema. São Paulo: Globo, 2010. p. 74-5.

 

FICHA TÉCNICA – O FAROL

Título Original: The Lighthouse

Direção: Robert Eggers

Roteiro: Max Eggers, Robert Eggers

Produção: Jay Van Hoy, Jeffrey Penman, Lourenço Sant' Anna, Michael Volpe, Rodrigo Teixeira, Youree Henley

Elenco: Robert Pattinson, Valeriia Karaman, Willem Dafoe

Fotografia: Jarin Blaschke

Trilha Sonora: Mark Korven

Montagem: Louise Ford

Estreia Brasil: 02/01/2020

Duração: 110 min.

 

FICHA TÉCNICA – A HORA DO LOBO

Título Original: Vargtimmen

Direção e Roteiro: Ingmar Bergman

Produção: Lars-Owe Carlberg

Elenco Max von Sydow, Liv Ullmann, Gertrud Fridh, Georg Rydeberg, Erland Josephson, Naima Wifstrand, Ulf Johansson, Gudrun Brost, Bertil Anderberg, Ingrid Thulin

Fotografia: Sven Nykvist

Trilha Sonora: Lars Johan Werle

Montagem: Ulla Ryghe

Duração: 81 min.

Comentários

LEIA TAMBÉM