Cabra Marcado Para Morrer/Santiago

         O Real no Documentário Nacional a Partir da Direção do Olhar

I.Breve Contexto Histórico do Documentário no Brasil

           Os registros documentais feitos no Brasil, na época do cinema mudo, dividem-se em dois tipos, quais sejam:
a)berço esplendido: mostram um Brasil selvagem, de natureza desconhecida e exuberante (é o caso dos registros feitos durante as expedições do Marechal Rondom);
b)rituais de poder: são produções feitas por e para as elites (ex: registros de batizados, aniversários) - nestes casos o povo quando aparece o faz de forma indesejada.
           Na virada dos anos 50 para os 60 emerge no país o documentário independente, responsável pela instituição da fase modernista do gênero. Neste passo, Aruanda (Linduarte Noronha, 1960) é compreendido como a obra que inaugura esta fase moderna do gênero, afinal, o que nele se vê é uma problematização das mazelas sociais, característica essa que o distingue dos dois tipos de documentários anteriormente produzidos, bem como dos filmes de cavação (obras feitas sob encomenda de núcleos empresariais, como, por exemplo, o grupo Votorantim). O olhar de Aruanda¹, voltado ao coletivo, aos problemas sociais de um povo abandonado a própria sorte, atribuiu ao documentário brasileiro novos objetivos e constatações, quais sejam:
- o papel crítico/sociológico do documentário moderno o distingue daqueles produzidos pelo INCE – Instituto Nacional de Cinema Educativo, eis que, apesar de ainda lançar mão da técnica da encenação, a meta a partir de então é por o povo na tela para, desta feita, quebrar a invisibilidade de outrora;
- o documentarista lança seu olhar e diagnostica os problemas sociais do país, numa tomada de distância que mantém o devido afastamento entre a realidade do cineasta e a realidade gravada;
- com efeito, considerando que as limitações tecnológicas ainda eram uma constante e que, portanto, era impossível a gravação de som direto sincrônico, lançava-se mão de uma herança do documentário clássico, qual seja o comentário do narrador, daí ser comum a inserção de comentários em formato de diagnóstico (narrados em voz over), o que, como outrora sugerido, ensejava uma forte relação de alteridade, eis que o realizador do filme parecia ser mais sabedor dos motivos da miséria do que os próprios miseráveis².

II.Cabra Marcado Para Morrer. O Nascimento do Documentário Contemporâneo

            Cabra Marcado Para Morrer (Brasil, 1984), representa a retomada de um projeto de Eduardo Coutinho interrompido em 1964 por conta do golpe militar. Dito isso, a partir das poucas imagens gravadas que sobraram daquele período e com base em suas lembranças pessoais, Coutinho traça um paralelo entre passado e presente ao registrar entrevistas das pessoas envolvidas com a produção durante a década de 60. 
      Dentro deste contexto, Jean-Claude Bernardet, afirma que o filme é um divisor de águas dentro do gênero, tendo em vista sua tendência híbrida, na qual coexistem as naturezas moderna (abordagem do coletivo – situação de trabalhadores vilipendiados por latifundiários) e contemporânea (abordagem individual – conseqüências singulares arcadas por cada indivíduo³).
           Isto posto, enquanto as imagens de 1964 são encenadas – até porque trabalhadas com base em um roteiro pré-definido – as imagens da década de 80 são frutos de gravações abertas que narram:
- tanto a aventura e o risco assumido pelo cineasta ao retomar um trabalho cujos envolvidos poderiam não estar sequer vivos,
- como o resultado arcado por trabalhadores e famílias que durante anos foram perseguidos por um Estado não democrático que sufocava toda e qualquer forma de revolta popular⁴,
daí ser possível afirmar que estas diferentes abordagens sintetizam vinte anos de evolução da linguagem documental no Brasil.
            O olhar em Cabra Marcado Para Morrer transita, portanto, entre o coletivo mas também sobre as unidades que compõem o todo, no que se inclui, ainda, a reflexão sobre o avanço da própria linguagem cinematográfica enquanto meio de expressão de um diagnóstico previamente determinado por uma equipe de produção e enquanto instrumento de investigação e de alcance de uma suposta verdade apontada, desta vez, pelos próprios seres retratados.
            Aliás, os filmes de Coutinho, regra geral, funcionam como lugares de investigação, tendo em vista a ausência de pesquisa e de argumento prévios, daí ser inegável a importância da entrevista para o cineasta, já que é através dela que o mesmo descobre o que não sabe. Mediante uma técnica própria de entrevista, Coutinho não trata seus entrevistados como tipos humanos coletivos, estratégia essa que, ressalte-se, tanto promove os deslocamentos de autoria (dos objetos do olhar), quanto, em última instância, consagra o documentário contemporâneo.

III. Santiago. Novas Possibilidades Para o Documentário Contemporâneo
           Tal como feito por Eduardo Coutinho em Cabra Marcado Para Morrer, João Moreira Salles retoma um projeto que abandonara na sala de edição em 1992, qual seja o documentário Santiago (Brasil, 2007). Ao analisar o material bruto filmado naquele ano, Salles realiza um ato de mea culpa seja em razão de sua postura enquanto cineasta empenhado em fabricar imagens e depoimentos, seja em virtude de sua conduta pessoal que jamais permitiu a quebra das barreiras sociais existentes entre ele na condição de filho do patrão e Santiago na posição subalterna de empregado. 
         Filmado sempre através de portas, Santiago, mesmo que por vezes tente, permanece enclausurado em sua instância de classe média baixa, daí sua admiração por classes aristocráticas de outrora poder ser compreendida como uma espécie de fuga. Salles percebe isso tarde demais, eis Santiago já havia falecido quando da retomada do projeto; todavia, ainda que de forma intempestiva, o documentarista não só concebe uma bela homenagem a um ser fascinante, como também revela, numa linguagem metalingüística, o próprio fazer fílmico enquanto atividade que maqueia ou até impede a verdade de vir a tona. Como atestam Cláudia Mesquita e Consuelo Lins: “Raras vezes na história do documentário um cineasta explicitou de tal maneira segredos que ficam, na maior parte dos casos, perdidos no material não usado dos filmes”⁵.
         Salles, portanto, discorre sobre um ser singular cuja relação com ele próprio o leva a também falar de si, enquanto homem e/ou cineasta, e das mudanças sutis que experimentou ao longo da vida, daí restar mais do que nítida a classificação do trabalho enquanto documentário contemporâneo.
             Uma vez que sua obra também é um estudo sobre a arte de fazer um filme, em especial do gênero documentário, Salles aproveita, já próximo ao término, para revelar a influência de seus rígidos enquadramentos: Yasujiro Ozu e seu Era Uma Vez em Tóquio (Japão, 1953). Neste diapasão, a posição estática da sua câmera pode até ser parecida ao método do diretor japonês, porém, o que há por trás desses planos parados são intenções que se diferenciam. Ozu utiliza uma linguagem minimalista que jamais exerce juízo de valor sobre seus personagens; dentro deste contexto, planos fixos e vagarosos funcionam para gerar intimidade entre as figuras criadas e o espectador que, desta feita, é levado, com base no exemplo fílmico a rever condutas que na verdade são suas, daí que ao fim da experiência os personagens resultam ilesos mas o público não. Já a fotografia rígida e distante de Santiago revela um julgamento implicitamente feito por Salles a época das filmagens em 1992 e explicitamente reconhecido pelo mesmo em 2007. Com efeito, portas e maçanetas são signos mais que evidentes do abismo existente entre as realidades do criado (Santiago) e do filho do patrão (Salles). Para os menos implacáveis as portas que se põem a frente de Santiago podem indicar as barreiras que limitam seus anseios aristocráticos, o que, ainda assim, não exclui a sensação de que aquela decupagem sintetiza o conteúdo emocional/ideológico de um artista em um determinado período de sua vida.

IV.    CONCLUSÃO:

            O que é mesmo um documentário? Sua definição necessariamente se dá em oposição ao campo da ficção?
                A resposta, por certo, é negativa tendo em vista que ainda hoje, embora numa escala menor, sejam feitos documentários embasados em encenações do cotidiano. Somando-se a essa constatação o fato de que a presença da câmera modifica performances, resta a conclusão de que o filme documentário não substitui a verdade, não sendo, portanto, um espelho do real, mas apenas um recorte alcançado a partir de determinadas eleições, isto é, uma construção fílmica produto da escolha de abordagens.
             Se Cabra Marcado Para Morrer abriu novos caminhos ao, enquanto experiência documental híbrida, marcar a transição da fase moderna para contemporânea do documentário brasileiro, Santiago consagrou em definitivo esta última vertente ao ampliar o viés metalinguístico da obra de Coutinho através da reflexão inerente a o que é ou não real seja enquanto composição plástica/estética seja enquanto trabalho criador de tipos humanos. A resposta para as incertezas fomentadas talvez advenha da conclusão obtida pelos próprios cineastas de que estes são filmes que apenas eles, respectivamente, poderiam fazer, o que, por certo, garante as obras uma autenticidade capaz de superar a dúvida sobre o que é ou não espontâneo, verdadeiro.
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1. O recorte de Aruanda incide sobre o trabalho artesão feminino. Dentro deste contexto, o curta-metragem trabalha com encenação do passado, ou seja, põe em cena um tempo anterior, mas não o faz de forma espetacular nem naturalista (até porque a situação de miséria do passado se mantinha no tempo presente de sua concepção), sendo este um dos motivos pelos quais Aruanda é apontado como precursor da estética da fome cinemanovista.
2. Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) é outro exemplo de documentário moderno deste período, afinal, em sendo um dos filmes pioneiros na utilização de som direto, tornou-se possível dar voz ao povo que, desta feita, passa a falar por si mesmo, o que, entretanto, não implica, ainda, numa total liberdade da fala, visto que o modelo deste filme é sociológico, daí porque a fala é controlada para fazer dos personagens tipos sociológicos.
3. No filme a família da protagonista representa a fragmentação de um povo a partir da desigualdade, da luta de classes e do golpe militar.
4.  As Ligas Camponesas vinham sendo criadas desde meados dos anos 50 com o objetivo de conscientizar e mobilizar o trabalhador rural na defesa da reforma agrária. Durante o governo de João Goulart (1961-64), o número dessas associações cresceu muito e, junto com elas, também se multiplicavam os sindicatos rurais. (FONTE: http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=242. Acesso em 10.03.2012)
5.   Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 77.

COTAÇÕES:
Cabra Marcado Para Morrer - ۞۞۞۞        
Santiago - ۞۞۞۞۞  

 FICHA TÉCNICA - Cabra Marcado Para Morrer
Direção e Roteiro: Eduardo Coutinho
Produção: Eduardo Coutinho, Vladimir Carvalho, Zelito Viana
Duração: 119 min.

FICHA TÉCNICA - Santiago
Direção e Roteiro: João Moreira Salles
Duração: 80 min.

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