Getúlio
Sessenta
Anos Depois, Ainda Somos os Mesmos...
Reconheçamos: Getúlio (Brasil, 2014) é um projeto corajoso em termos comerciais,
visto ser um drama político lançado com pompa numa terra onde a esmagadora
maioria das produções nacionais chanceladas pelo público é composta por
comédias de gosto duvidoso. Neste sentido, por mais discutível que seja a
escalação de um rosto conhecido como o de Tony Ramos para encarnar o
controverso presidente Vargas, revela-se imperioso quanto ao retorno do
investimento a presença de alguém querido o bastante para estimular a ida das
pessoas ao cinema, afinal, não bastasse ser carente de piadas, o filme ainda
enfrenta a resistência advinda da amnésia que uns experimentam e do estado de
ignorância ao qual outros são mantidos ou optam por desfrutar acerca dos
eventos ocorridos neste país.
Realizadas as devidas
considerações e elogios quanto ao empenho de produtores em levar para as telas
um naco tão relevante da história do Brasil – o que, no mínimo colabora para
diversificar o que se tem filmado por aqui – cabe ponderar que em não sendo
este um retrato abrangente da trajetória de Getúlio Vargas no poder, mas apenas
um fragmento em torno dos dezenove dias que antecederam sua morte, a faceta ditatorial do presidente manifestada durante o Estado Novo é
citada como uma mera nota de rodapé, o que denota parcialidade e admiração do
longa-metragem pela figura pública.
Uma vez chapa branca, o filme
evita polêmicas preferindo, desta feita, tratar Vargas como um homem que na
velhice flertava com a redenção, pensamento esse atestado na seguinte fala de
Tony Ramos: “Ele foi um ditador, e
truculento, mas no final da vida, naqueles 19 dias, era outro”¹. Desse
modo, a ambiguidade que envolvia Getúlio e sua relação com um povo que, mesmo
após submetido a sua ditadura, o elegera democraticamente anos depois para o
exercício de um novo governo, não é vista ou percebida, assim como pouco se
fala de importantes itens de seu legado aos brasileiros, qual
seja a instituição dos direitos dos trabalhadores mediante a promulgação da
Consolidação das Leis do Trabalho, bem como a materialização de um
empreendimento então compreendido como insensato, qual seja a hoje tão achincalhada e
saqueada Petrobrás.
Em sendo um recorte, Getúlio acerta ao enveredar pela toada
do thriller, das intrigas palacianas,
comportando-se, portanto, como o tradicional filme de bastidores políticos² -
daí a as filmagens terem ocorrido de forma praticamente integral no interior do
Palácio do Catete, locação essa que facilitara o processo de reconstituição de
época driblando, por conseguinte, eventuais restrições orçamentárias. Ressalve-se,
todavia, que independentemente dos caminhos percorridos pelo roteiro, do viés
estético no qual a história fora encaixada e das virtudes técnicas da produção
cinematográfica, o principal valor de Getúlio
provem da reflexão que o filme provoca acerca das turbulências de ontem que
parecem querer se repetir hoje.
Não obstante a opressão que um dia
Vargas instaurara sobre o país, a queda de braço por ele travada contra os
militares durante os últimos meses de seu mandato e, sobretudo, seu suicídio
atrasaram por uma década o golpe militar que inauguraria no Brasil os anos de
chumbo, conforme conclui Tancredo Neves
em frase transcrita ao término do filme. Com efeito, parece perda de tempo especular
sobre a real intenção de Getúlio ao ceifar a vida: não ceder aos anseios dos
muitos que pediam sua renúncia em razão de uma egocêntrica vontade de preferir
a glória ao invés de enfrentar um fim de existência que insistia em macular seu nome
e sua história ou, ao contrário, visando o bem do país, desmoralizar as forças
opositoras com um golpe tão duro que colocaria toda uma nação de encontro
aquelas? Seja qual for a resposta, uma coisa é certa: Getúlio não abriu mão de
sua honra, o que, em última instância, demonstrou que seu suposto desconhecimento
acerca dos atos de corrupção e de criminalidade praticados por aliados durante seu
último mandato parecia legítimo, ao menos no que tange o atentado a seu inimigo
público número um Carlos Lacerda, na medida em que o estrategista nele presente
dificilmente permitiria a prática de ato tão estúpido³.
Por ser a passagem de Vargas pelo
Poder Executivo um capítulo ainda recente da História do Brasil, não houve
ainda tempo suficiente para que o currículo ditatorial do político fosse
ignorado e o homem mitificado. Simultaneamente tal proximidade
temporal mostra o quanto o Brasil de 1954 se confunde com o de 2014, considerando que continuamos testemunhando as instituições serem banalizadas pela
corrupção e pela criminalidade ao nível extremo de cidadãos passarem a pregar a
favor de algo que parecia impensável anos atrás: a volta do regime militar. Não a toa, o diretor João Jardim “brinca que Getúlio é tão atual que outro dia
se assustou com a manchete ‘Vargas pressionado para se afastar do cargo’ em referência ao deputado federal André
Vargas”₄.
A insatisfação de hoje é
semelhante ou até superior a de sessenta anos atrás; equivocados, contudo, são
aqueles que apóiam qualquer forma de limitação da democracia como remédio.
Esquecem eles que a supressão das liberdades individuais de toda uma população é uma resposta desproporcional e ineficaz contra a calhordice de algumas centenas. Resgatar a
honra e o respeito a República já é um considerável passo rumo a melhoria do
país. O ato de imolação de Getúlio Vargas, conscientemente ou não, assim
demonstrara.
__________________________
1. FONTE:
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,getulio-promete-ser-o-thriller-do-ano,1154645,0.htm
. Acesso em 26.05.14.
2. Ao modo do que
fora feito, por exemplo, em 13 Dias que
Abalaram o Mundo (EUA, 2000), drama que retratou a crise dos mísseis de
Cuba.
3. Vale dizer ser
aquele um tempo em que as traições eram genuínas ao passo em que a oposição de
fato existia, atuando sem cansaço na missão de deposição de um presidente.
Nenhuma semelhança, portanto, se vislumbra para com o metalúrgico que décadas
mais tarde subornara toda uma classe política em prol de um projeto particular
de poder e que ainda hoje afirma nada ter ocorrido neste sentido. Tão cretina e
cínica quanto sua alegação de desconhecimento dos fatos, vale dizer, fora sua
recente declaração de que os braços fortes de outrora nunca foram pessoas de
sua confiança.
4. FONTE: Revista
Preview. São Paulo: Sampa, maio de 2014. Ano 5. Ed. 56. p. 44.
FICHA TÉCNICA
Direção: João Jardim
Roteiro: George Moura, João Jardim
Elenco: Tony Ramos, Alexandre Borges, Drica Moraes, Thiago Justino,
Adriano Garib, Michel Bercovitch, Alexandre Nero, Marcelo Médici, Leonardo
Medeiros
Duração: 100 min.
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