Cabra Marcado Para Morrer
Divisor de Águas¹
Cabra
Marcado Para Morrer (Brasil, 1984)
representa a retomada de um projeto de Eduardo Coutinho interrompido em 1964
por conta do golpe militar. Assim, a partir das poucas imagens gravadas que
sobraram daquele período e com base em suas lembranças pessoais, Coutinho traça
um paralelo entre passado e presente ao entrevistar, vinte anos depois, algumas
das pessoas envolvidas na produção durante a década de 60. No filme a
família do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado no início dos anos
60 a mando de latifundiários, ilustra a fragmentação de um povo a partir da
desigualdade, da luta de classes e do golpe militar. Neste passo, verifica-se
de forma simultânea tanto uma análise ampla da realidade dos trabalhadores
vilipendiados pelos proprietários das terras quanto um estudo restrito das
conseqüências singulares arcadas por cada indivíduo, daí Jean-Claude Bernardet
afirmar que o título é um divisor de águas dentro do gênero documentário, tendo
em vista sua tendência híbrida na qual coexistem as naturezas moderna
(abordagem do coletivo²) e contemporânea (abordagem individual)³.
Trocando
em miúdos, enquanto as imagens de 1964 são encenadas – até porque trabalhadas
com base em um roteiro pré-definido – as imagens da década de 80 são frutos de
gravações abertas que narram a aventura e o risco assumido pelo cineasta ao
retomar um trabalho cujos envolvidos poderiam não estar sequer vivos, além do
resultado arcado por cada um dos camponeses que durante longo tempo foram
perseguidos por um Estado não democrático que sufocava toda e qualquer forma de
revolta popular. O olhar em Cabra Marcado Para Morrer transita,
portanto, entre o coletivo, mas também sobre as unidades que compõem o todo, no
que se inclui, ainda, a reflexão sobre o avanço da própria linguagem do cinema
documental enquanto, até então, meio de expressão de um diagnóstico social previamente
determinado por uma equipe de produção e enquanto instrumento de investigação e
de alcance de uma suposta verdade apontada, a partir de então, pelos próprios
seres retratados, daí ser possível concluir que esta diversificada gama de
abordagens sintetiza vinte anos de evolução do documentário brasileiro em
termos de linguagem.
Cabra
Marcado Para Morrer se vale de um modus operandi que passaria a ser
característica do trabalho de Coutinho, qual seja a utilização do próprio
processo de filmagem como lugar de investigação, face a ausência de pesquisa e
de argumento prévios. Coutinho não pretende saber nem apontar antecipadamente
os problemas, sua meta é descobrir aquilo que não sabe mediante uma irreparável
técnica de entrevista na qual são consideradas as especificidades de cada pessoa.
Graças a esse formato de direção o documentarista mantém o devido
distanciamento de autoria, isto é, não incide no erro de ser o acusador, o
autor da denúncia, optando, em contrapartida, por ser apenas o instrumento de
informação utilizado pelos verdadeiros donos dos relatos, o que garante a
individualidade dos interlocutores, além de consagrar em última instância o documentário
contemporâneo.
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1. Adaptação de
texto originalmente publicado através do link
http://setimacritica.blogspot.com.br/2012/04/cabra-marcado-para-morrersantiago.html.
2. Implementada na produção nacional a partir
de 1960 com o lançamento de Aruanda
de Linduarte Noronha.
3. Neste sentido,
recomenda-se a leitura de BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
FICHA
TÉCNICA
Direção e Roteiro: Eduardo
Coutinho
Produção: Eduardo
Coutinho, Zelito Viana
Fotografia: Fernando
Duarte, Edgar Moura
Montagem: Eduardo
Escorel
Música: Rogério
Rossini
Duração: 119 min.
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