Aquarius



Memórias Apartidárias

Falar sobre Aquarius (Brasil, 2016) não é tarefa simples tamanho o número de tópicos sobre os quais o filme se debruça. O risco de não alcançar o grau de coesão demonstrado por Kleber Mendonça Filho (KMF) no mosaico por ele engendrado é considerável, daí que ciente do quão enorme é a pretensão, opta-se pela estratégia de analisar a obra em modo episódico - tal qual a narrativa se desenvolve na tela - para que a maior quantidade de temas possa ser abordada sem perda do leme.

Parte I – Em Defesa da Memória:

  Ao escrever sobre Aquarius Suzana Uchôa Itiberê define o título como “um libelo contra a especulação imobiliária”¹. Ocorre que tal descrição padece de reducionismo haja vista que a história da crítica de música acossada por uma grande empresa de engenharia a vender o apartamento onde mora funciona apenas como pontapé inicial para a discussão de temas ainda mais densos e controversos.
Como uma metáfora, o ato de resistência da aposentada Clara – Sônia Braga exalando leveza em um papel que muito exige – ilustra um embate entre o novo e o velho que, por seu turno traz à memória Acima das Nuvens (Alemanha/França/Suíça, 2014), de Olivier Assayas, com um fator diferencial: enquanto neste o que se vê é o problema do choque geracional experimentado por duas mulheres, em Aquarius o objeto de estudo é a perda da memória individual e coletiva, algo, portanto, maior e mais significativo.  Neste diapasão, a produção lembra a plateia que pessoas, lugares, tradições e costumes vão sendo deixados para trás no passado a fim de que espaço seja aberto para o futuro². Por isso, Clara resiste para que a história dela e de sua família não seja implodida por interesses alheios e resiste para que sua paixão por viver não seja apagada pelas limitações do corpo e da idade.

Parte II – As Contradições de Clara:

 Em meio ao tour de force vivido por Clara, Kleber Mendonça Filho, enquanto observador aguçado³ do comportamento brasileiro, insere entrelinhas que podem até não dialogar diretamente com o assunto principal do roteiro, mas que ajudam a compor um painel sobre a sociedade na qual os personagens vivem e como por ela são influenciados.
No que tange a personagem Clara, cabe dizer que ela se posicionou a frente de seu tempo, resistindo, as imposições sociais ao deixar os filhos pequenos aos cuidados do pai por conta de aspirações profissionais - rebentos esses cujos pensamentos conservadores são por ela hoje enfrentados. Dotada de uma visão humanista Clara paradoxalmente lamenta, por exemplo, pelas joias de família furtadas por uma empregada doméstica, receia que o gigolô que a saciara certa noite invada sua casa para levar seus pertences, amedronta-se com o aspecto marginal de jovens negros que transitam pela orla de Boa Viagem e assusta-se com a descoberta de que um jovem branco de privilegiadas condições financeiras utiliza aquele mesmo local para traficar drogas.
No contexto de suas próprias ambições e contradições Clara resiste contra as práticas opressoras da elite pernambucana no afã de manter sua cobiçada propriedade privada. Tal relutância, a depender de interpretação de cada um, pode tanto simbolizar a insatisfação de uma parte da nação que ainda rejeita seu atual chefe do governo federal por entender que este alcançara o posto de maneira ilegítima quanto, ao contrário, pode caracterizar tão somente os interesses individuais daquela, não havendo nesse caso que se falar que sua postura reproduz os anseios dos desfavorecidos, afinal, na condição de integrante da classe média alta, Clara não é alguém que sente na pele as agruras enfrentadas pelos mais pobres. A conclusão fica, então, a cargo do espectador.

Parte III – A Direção:

 Em entrevista para divulgação do filme a atriz Maeve Jinkings assim declarou: “Kleber [...] apurou uma linguagem audiovisual muito própria, brinca com códigos de cinema de gênero com ainda mais fluidez, além de manter uma identidade forte em termos de visão de mundo.
Uma vez que perfeitas tais colocações resta inevitável concluir que, mesmo ótimo, o arrebatador O Som ao Redor (Brasil, 2012) acabou superado por Aquarius, o que se deve ao exemplar aprofundamento do conteúdo proposto levado para a tela por meio de uma narrativa perfeitamente desenvolvida eis que montada em torno de diálogos primorosos, elipses bem estruturadas e personagens precisamente moldados e interpretados por um elenco impecável. Não fosse o bastante, KMF agrega ao drama momentos ímpares de tensão social e suspense que colaboram para manter o envolvimento do público que, extasiado, não sente passar o tempo de duração da obra e ainda se pega por vezes torcendo para que o término não ocorra tão cedo.
Considerando que todos esses conceitos técnicos são importados e aperfeiçoados de O Som ao Redor, o desenho de som, tão valorizado neste último, recebe semelhante atenção em Aquarius. Neste passo, se no longa de estreia de KMF eram os ruídos e silêncios que se impunham como um personagem extra da trama, no título estrelado por Sônia Braga é a música que assume tal papel embalando o filme e em especial a trajetória de Clara de ponta a ponta, o que faz deste um trabalho incrível de se ver e ouvir ou, em outras palavras, uma experiência sensorial completa.

Parte IV – Ex Positis:

Seja qual for o posicionamento político de quem assiste Aquarius, não é preciso concordar com as ideias e lições propagadas por Kleber Mendonça Filho para reconhecer que, no mínimo, a forma com que seu discurso fora cinematograficamente arquitetado é irretocável. Enquanto a pequena obra-prima que é, Aquarius não merece ser vitimado pelos arroubos emocionais ensejados pelo fla-flu político existente nessa presente época. Ser o espectador partidário de Dilma Rousseff ou de Michel Temer não muda o fato de que a produção é virtuosa em sua técnica, além de densa e incômoda em seu conteúdo. Em se tratando de cinema da melhor espécie há de ser o mesmo, portanto, saudado, reverenciado ao invés de estupidamente boicotado como alguns sugerem.
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1.    Revista Preview. Ano 7. ed. 83. São Paulo: Sampa, Agosto de 2016. p.24.
2.   Assim como ossadas são retiradas das sepulturas para descarte pondo fim em definitivo ao que de concreto um dia existira sobre alguém.
3.    Duas sequências significativas nesse sentido:
a)   Aquela em que o sobrinho menos querido de Clara, ao lado da noiva, busca no apartamento da protagonista fotos antigas para a cerimônia de seu casamento, haja vista que a entrada em cena do sobrinho preferido que junto com a namorada forma um casal não convencional e quadrado desperta todo o desconforto dos noivos demonstrado sem palavras e apenas com gestos e olhares; tratam-se assim de reações captadas pelo senso de observação de KMF inseridas como uma espécie de aba aparentemente destacável mas que, como já dito, colabora para compor o delineamento psicológico dos personagens.
b)   Aquela em que Clara é entrevistada por uma repórter sem talento que mesmo recebendo respostas inspiradas entrega uma matéria fútil, aquém dos assuntos tratados.
4.    Revista Preview. Ano 7. ed. 83. São Paulo: Sampa, Agosto de 2016. p.27.
5.   Vide, por exemplo, os elegantes movimentos de câmera que permitem a esta passear sem cortes entre locações externas e internas.

FICHA TÉCNICA


Direção e Roteiro: Kleber Mendonça Filho

Produção: Emilie Lesclaux, Michel Merkt, Saïd Ben Saïd

Elenco: Sônia Braga, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Buda Lira, Carla Ribas, Daniel Porpino, Julia Bernat, Fernando Teixeira, Humberto Carrão, Paula De Renor, Pedro Queiroz, Rubens Santos, Thaia Perez

Fotografia: Fabrício Tadeu, Pedro Sotero                         

Estreia: 01.09.16

Duração: 142 min.

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