Jonas e o Circo Sem Lona
O
Silêncio que Precede o Esporro
Jonas e o Circo Sem Lona (Brasil, 2015) passa ao espectador durante
toda sua primeira metade uma impressão que pode soar incômoda a muitos, qual a
seja a possibilidade de os agentes retratados passarem considerável parte das
filmagens posando para as câmeras, isto é, reproduzindo, interpretando um
comportamento diferente daqueles que lhes é comum, o que denota tanto a timidez
de alguns quanto a tentativa de outros de parecer melhor do que de fato são. Tal
sensação é confirmada e adiante dissipada graças a um depoimento não programado¹
que agrega um valor teórico inestimável ao documentário, bem como amplia as
possibilidades de interpretação da obra; trata-se, neste sentido, da fala de
uma professora de Jonas que se mostra indignada quanto a realização de um filme
sobre a vida do aluno, isso porque, segundo a profissional do magistério, a
conduta por aquele apresentada frente as câmeras em nada condizia com sua
natureza relapsa e totalmente descompromissada com os estudos, daí que o
protagonismo fílmico do adolescente representava na ótica daquela a coroação, o
enaltecimento da mediocridade, o que, além de afrontar àqueles que se dedicam ao
aprendizado, poderia influenciar outros a se portar tal como Jonas em nome de
semelhante reconhecimento midiático.
Esse esporro que a diretora Paula Gomes
toma da professora consiste num dos melhores momentos do documentário nacional nessa
década, ao passo em que sintetiza toda uma discussão sobre até que ponto a
câmera consegue captar a real essência das pessoas, assunto sobre o qual Murilo
Salles assim se manifesta:
“A câmera
ocupa um lugar determinado no espaço. Ela é um olhar inteligente que se desloca
criando uma narrativa, fazendo opções de olhar, que, inclusive, exclui da cena
aquilo que não quer ver. [...] Não dá para dissimular isso. Não existe o efeito
de câmera invisível. A câmera é um ‘poder estabelecido’”.²
Seja qual for o real caráter de Jonas,
é indiscutível que a dificuldade que o mesmo possui de ser compreendido e/ou de
receber a aceitação da mãe quanto a seu desejo de seguir uma trajetória de
artista circense, somada a derrocada de seu “circo sem lona” parecem já ser
castigos suficientes impostos ao rapaz, a despeito da vontade de sua professora
para quem o ostracismo seria o melhor modo de repreender a postura “errática”
do jovem, contexto esse em que o final em aberto para toda uma gama de coisas
boas ou ruins reservadas pelo futuro se revela correto e até um tanto poético, concluindo
com louvor uma produção que amadurece ao longo de seu desenvolvimento.
Explique-se: até antes do supracitado relato da professora o documentário busca
de modo não natural trilhar um caminho de convencimento do espectador seja
através da participação por vezes teatral de Jonas, seja por meio de opções
manipuladoras de Paula Gomes que, por exemplo, insere em determinada passagem o
áudio de uma suposta matéria de radiojornalismo sobre a criminalidade entre adolescentes
enquanto o protagonista do filme manuseia os artefatos de seu picadeiro, numa
combinação audiovisual que denota o afã da cineasta por mostrar o quão apreciável
e afastado do mal é seu personagem, estratégia essa que, por óbvio, busca conduzir
a forma de pensar da plateia até ocorrer a eclosão de verdade proporcionada
pela já mencionada fala da professora.
Não, Jonas não é nenhum meliante,
nenhum ser abominável, é apenas um garoto com virtudes e defeitos como qualquer
um. Equivocadamente o documentário ignora tais vicissitudes durante sua
primeira metade ao tentar passar uma imagem apenas cativante do menino,
condução essa revertida quando, emparedado pela realidade, o filme assume seu erro
e passa a tecer uma abordagem diferenciada e até mais humana na medida em que
busca compreender o ser humano como de fato é ao invés de idealizá-lo.
É bem verdade que essa é uma possibilidade de
interpretação, a qual se vincula essa análise, que acredita na honestidade do
projeto e na espontaneidade sequencial das imagens registradas. Caso, contudo,
não seja esse o caso, ou seja, se porventura tudo o que é visto não passar de
um “Documentário, com um perfume de
ficção. Uma ficção documental”, como sugere Luiz Carlos Merten³ a respeito
do título, ainda assim o trabalho de Paula Gomes não poderá ser diminuído, pois
nesse caso servirá como exemplo de escorreita aplicação dos preceitos implementados
por Robert J. Flaherty que em
seu Nanook, O Esquimó (1922)
incorporou ao documentário elementos da ficção narrativa, conforme
explica Silvio Da-Rin in verbis:
“[O
documentário] inovava ao colocar os fatos que testemunhou em uma perspectiva
dramática: construía um personagem – Nanook e sua família – e estabelecia um
antagonista – o meio hostil dos desertos gelados do norte.
[...] Flaherty
incorporou a Nannok of the North as conquistas […] da montagem narrativa, que
resultam na manipulação do espaço-tempo, na identificação do espectador com o
personagem e na dramaticidade do filme”⁴.
Dentro deste contexto, a tentativa
de Paula Gomes convencer a mãe de Jonas a deixá-lo trabalhar no circo de um tio
aponta um comportamento não passivo e, ao contrário, determinado a interferir
na sucessão e ocorrência dos fatos a serem registrados seja pelo bem-estar do
protagonista, seja pelo enriquecimento do filme que contaria - se exitosa fosse
a interpelação da cineasta - com novo viés dramático a ser explorado.
Dito isso, Jonas e o Circo Sem Lona se firma como um trabalho superlativo por
conta das discussões teóricas estimuladas, resultado que Gomes conquista porque
assume sem constrangimento as falhas de seu trabalho de direção, delas se valendo
para em seguida aprimorar o filme - seja esse um caminho fruto do imprevisto ou
previamente pensado.
_____________
1. Felizmente o relato fora incorporado ao filme tal como
deve ocorrer em qualquer documentário que se dedique a chegar o mais próximo
possível da almejada verdade real.
2. Questões Para Pensar o Cinema que Quero Fazer in Contente em Ler – Cineastas – Crônicas, Contos e Recordações. Brasília:
Usina de Letras, 2010. p. 72.
3. Diretora de 'Jonas e o Circo Sem Lona' comemora sucesso do filme. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,diretora-de-jonas-e-o-circo-sem-lona-comemora-sucesso-do-filme,70001713189 Acesso em 10.12.17.
4. Espelho partido:
tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro: Azougue Editorial,
2004.
FICHA TÉCNICA
Direção: Paula Gomes
Roteiro: Paula Gomes, Haroldo Borges
Elenco: Jonas
Laborda, Wilma Macedo, Neide Silva, Wanderson Silva, Micael Nunes, Ian Laborda,
Gutinho Silva, Mateus Lima, Ana Paula Araújo.
Produção: Ernesto Molinero, Marcos Bautista
Duração: 81 min.
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