Ex-Pajé
A Decupagem
de um Discurso
Ex-Pajé (Brasil, 2018) inicia sua narrativa com a seguinte citação
de Pierre Clastres: “O etnocídio não é a destruição física dos homens, mas a
destruição sistemática de seus modos de vida e pensamento. Enquanto o genocídio
assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito”.
Uma vez deixado para trás o background da epígrafe supracitada, o
que se vê em seguida são cenas do território indígena Paiter Suruí captadas em
1969, época em que a vegetação dominava o lugar e os índios ainda mantinham
fortes traços de sua cultura, embora já contatados pela “civilização”. Tais imagens
de arquivo são interrompidas por um corte que numa brilhante exemplo de elipse
proporciona um salto para 2017, tempo esse apresentado por meio de um simples
plano de um poste de energia elétrica que logo é mostrado como fincado no
interior da aldeia daquela tribo antes mencionada, área essa que agora é
formada por algumas poucas ocas dada a predominância de casas de madeira.
Ato contínuo, Perpera, o
protagonista do documentário, é mostrado refletindo em seu quarto sob a luz de
uma lâmpada, momento que antecede a sequência próxima quando já amanhecido o
dia, Bira, sobrinho do personagem principal, chega de motocicleta – trajando
bermuda e camiseta com frases em inglês – até a casa deste último para lhe
fazer a entrega de uma encomenda retirada nos correios, qual seja a tese
encadernada e escrita em francês¹ de um antropólogo estrangeiro que passara uma
temporada com os índios para sobre eles dissertar. Neste passo, ao receber o
calhamaço acadêmico Perpera comenta: “ele
gostava de perguntar sobre o tempo que eu era pajé”, afirmação que desperta
a curiosidade do sobrinho que o indaga se era prazeroso exercer a pajelança,
assunto que é respondido com o seguinte lamento: “Antigamente se consultava o pajé, hoje só tomam aspirina”.
E é assim mediante planos precisos
que adiante apresentam Perpera transitando na carroceria de uma caminhonete,
fazendo transações bancárias em uma agência lotérica, comprando mantimentos em
um supermercado, cozinhando com a ajuda de um botijão de gás, caminhando engravatado
rumo a um culto, além de imagens de crianças indígenas brincando com aparelhos
eletrônicos e bola de futebol e de índios adultos pegando em armas de fogo para
combater madeireiros – no que são questionados por aqueles que mais pacíficos
preferem denunciar aqueles que desmatam a floresta por meio do Facebook – que o diretor Luiz Bolognesi discorre
sobre a trajetória de Perpera, um índio que teve de deixar de ser
pajé seja porque seus pares passaram a se valer dos benefícios da medicina, no
que se inclui vacinação e uso de remédios, seja porque seu ofício fora
demonizado pelo pastor evangélico que catequizara os indígenas da região,
história individual essa que, por óbvio, serve para ilustrar a realidade de uma
coletividade.
Ao tratar da aculturação² de tal
povo, o cineasta não cai no risco de criticar os novos modos de vida dos índios
como se proibido fosse para eles ter acesso aos avanços desfrutados pelo “homem
branco”, por exemplo, nos campos da tecnologia e da saúde³, contudo, não deixa
de refletir acerca do efeito disso, qual seja a perda de identidade cultural
sintetizada pela supracitada citação de Clastres, bem como pelo olhar desolado
de Perpera que segue nitidamente frustrado tentando se encaixar numa nova era
que considera ultrapassado e irrelevante tudo aquilo que ele aprendera a fazer
quando jovem.
A forma com que Bolognesi defende tal
linha de pensamento é o que o longa-metragem possui de melhor, já que o modus operandi para tanto usado possui
amparo sobretudo na decupagem aqui auxiliada por reencenações de eventos
ocorridos, tal como observa Pablo Lacerda: “seguindo uma tradição
iniciada por Robert J. Flaherty em Nanook do Norte (1922),
[o filme] emprega pessoas reais
reencenando acontecimentos da própria vida para a câmera e criando um registro
documental ficcionalizado”⁴. Tal opção narrativa, embora possa
desagradar os puristas e seu utópico desejo de, através da linguagem documental,
desfrutar de produtos que retratem a realidade sem intervenções da equipe de
filmagem, não há de ser encarada como um demérito da produção, afinal:
·
conforme salienta Bruno Carmelo: “Estes recursos não eliminam a veracidade do projeto, apenas demonstram
que o diretor jamais se esconde por trás de uma falsa objetividade, assumindo
seu ponto de vista e sua presença naquele local” ⁵;
· tal
estratégia um tanto que se alinha aos ideais de Jean Rouch, documentarista cujas
etno-ficções⁶, baseadas no método da antropologia compartilhada, rompiam “com a imposição de uma representação realista e com o ideal de transparência da câmera” ⁷.
Em meio as
referências concernentes ao gênero fílmico a que se filia, Ex-Pajé apresenta uma relevância própria graças ao modo com que a câmera, a despeito de ter sua presença
evidenciada ante as nítidas reconstituições/encenações de eventos, é ao mesmo
tempo posta numa posição de discrição que não se confunde com o tom das obras
de Robert Flaherty (vide Nannok, o
Esquimó e sua toada aventureira) e de Jean Rouch (que fazia o equipamento
de gravação comungar do transe⁸ experimentado pelos seres filmados).
Sucinta, a obra consegue estruturar
seu discurso, não raro sem palavras, tão apenas com imagens inteligentemente
pensadas/escolhidas/filmadas. Não bastasse dispensar o uso de entrevistas e de
músicas não diegéticas Ex-Pajé mantém
suas câmeras estáticas, até porque as
conversas por elas registradas dispensam quaisquer maneirismos, bastando, ante
a qualidade do conteúdo, sapiência para enquadrar o que é estritamente necessário.
Com efeito, a produção se desenvolve de maneira contemplativa e propositalmente
lenta para assim emular a velocidade com que a vida transcorre na aldeia de
Perpera, sendo o tempo de duração na tela dos planos algo consumido pelo
espectador com prazer e não com tédio, virtude essa que permite constatar como
a decupagem tem a ver não somente com a escolha daquilo que será enquadrado mas
também com a quantidade de segundos que o plano utilizará⁹. Trata-se, portanto, de um documentário etnográfico de
valiosa linguagem cinematográfica alinhada com exatidão ao conteúdo do discurso
defendido.
__________________________________
1. Como bem observa Bruno
Carmelo sobre tal passagem do documentário: “O momento com
Perpera e seu filho recebendo a tese de um antropólogo francês, mas sem poder
ler o conteúdo, diz muito sobre a comunicação e a transformação dos índios em
objeto, ao invés de sujeito” (A cultura do outro, disponível em
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-261394/criticas-adorocinema/ . Acesso
em 29/01/2019).
2. Sobre o assunto
merece destaque a lição de Roque de Barros Laraia a respeito: “existem dois tipos de mudança cultural: uma
que é interna, resultante da dinâmica do próprio sistema cultural, e uma
segunda que é o resultado do contato de um sistema cultural com um outro. [...]
O segundo caso [...] pode ser mais rápido e brusco. No caso dos índios
brasileiros, representou uma verdadeira catástrofe. Mas, também, pode ser um
processo menos radical, onde a troca de padrões culturais ocorre sem grandes
traumas. Este segundo tipo de mudança, além de ser o mais estudado, é o mais
atuante na maior parte das sociedades humanas. [...] Surge, então, o conceito
de aculturação” (Cultura: um conceito
antropológico. 23ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p.96-7).
3. Dentro deste contexto, Bruno Carmelo comenta: “Seria
fácil o projeto apelar para o puritanismo condescendente, afirmando que aquela
comunidade vivia melhor com os seus hábitos tradicionais, e que de certa forma,
foi aculturada pelo contato com o homem branco. Felizmente, o diretor Luiz
Bolognesi enxerga a cultura como uma noção dinâmica, e jamais ousa ditar aos
índios o que seria melhor para eles” (A
cultura do outro, disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-261394/criticas-adorocinema/
. Acesso em 29/01/2019).
4. Festival de Berlim 2018 - Dia #03. Disponível em http://cinemaemcena.cartacapital.com.br/coluna/ler/2388/festival-de-berlim-2018-dia-03.
Acesso em
29/01/2019).
5. A cultura do
outro, disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-261394/criticas-adorocinema/
. Acesso em 29/01/2019.
6. Como explica Kate Saragaço-Gomes: “Em linguagem cinematográfica, a etnoficção acaba por ser uma docuficção ewtonográfica, isto é, uma narrativa ficcionada, construída a partir de personagens nativas do local filmado, que desempenham o seu próprio papel como membros de determinado grupo étnico ou social. Quer isto dizer que, sendo ficção em termos narrativos, é documental na sua base, referindo-se a lugares e pessoas existentes no contexto apresentado, onde apenas a linha de ação é inventada e dirigida” (A partir das ideias de Jean Rouche: Documentarismo - a verdade do cinema. Disponível em: http://www.academia.edu/7096762/A_partir_das_ideias_de_Jean_Rouche_Documentarismo_-_a_verdade_do_cinema . Acesso em 29/01/2019)
7. SZTUTMAN, Renato. Imagens perigosas: a possessão e a gênese
do cinema de Jean Rouch. Disponível em:
www.journals.usp.br/cadernosdecampo/article/download/50254/54368. Acesso em
29/01/2019.
8. Jean Rouch propunha “um cinema criado pelo cine transe – o
instante no qual cineasta, equipe, elenco entregam-se à filmagem, em uma
espécie de dança de possessão, medindo seus sentidos por meio dos equipamentos
cinematográficos, substituindo o ‘eu’ garantido, certo, rotineiro, por um ‘eu’
do filme, incerto, novo e mais verdadeiro”(COELHO,
José Geraldo Freire. Cine-transe, experiência e narração no filme Jaguar, de
Jean Rouch. 2009. 132 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação)-Universidade de
Brasília, Brasília, 2009. p. 10. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/4477?mode=full.
Acesso em 29/01/2019).
9. Noel Burch considerava
o filme como uma série de fatias de espaço (o enquadramento de cada
plano, fixo ou em movimento) e de fatias de tempo (a duração de cada
plano). Neste diapasão a decupagem consiste: (a) a planificação por escrito de
cada cena do filme, com indicações técnicas detalhadas; (b) o rol de escolhas
feitas pelo realizador quando da filmagem, envolvendo planos e possíveis
cortes; (c) "a feitura mais íntima da obra acabada, resultante da
convergência de uma decupagem no espaço e de uma decupagem no tempo" (Práxis do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1969, pp. 11-12). Logo, a decupagem tem início na planificação, concretiza-se na filmagem
e assume uma forma definitiva na montagem.
FICHA TÉCNICA
Direção e Roteiro: Luiz Bolognesi
Produção: Caio Gullane, Fabiano Gullane, Laís
Bodanzky, Luiz Bolognesi
Elenco: Agamenon Suruí, Kabena Cinta Larga,
Perpera Suruí, Ubiratan Suruí
Fotografia: Pedro J. Márquez
Montagem: Ricardo Farias
Estreia: 26/04/2018
Duração: 81 min.
Comentários
Postar um comentário