Sing Street - Música e Sonho
De Volta à New Wave
John Carney estabeleceu um padrão alto de qualidade para sua
filmografia a partir do lançamento do soberbo Once - Apenas Uma Vez (Irlanda, 2007),
romance permeado por canções originais incríveis cuja narrativa, embora ficcional,
flertava com a linguagem documental. Por óbvio cada novo trabalho do cineasta
desperta o desejo de que semelhante grau de excelência seja alcançado até
porque o combo formado por romance e música tem desde então marcado seus
roteiros, o que não quer dizer que o artista venha se limitando a nadar na onda
do sucesso de outrora, já que as semelhanças entre a referida produção e suas
obras posteriores param por aí. Enquanto o título supracitado possui a postura
de um drama clássico, Mesmo Se Nada Der Certo
(EUA, 2013) se aproxima da dramédia romântica hollywoodiana ao passo que Sing
Street - Música e Sonho (Irlanda/Reino
Unido/EUA, 2016) é uma nostálgica viagem aos anos 80 que homenageia o estilo new wave, no que se inclui suas melodias
agridoces e visuais espalhafatosos, além de emular o cinema adolescente de John
Hughes, vide as
consideráveis influências de O Clube
dos Cinco (EUA, 1985) nele percebidas.
Nesta toada, a trama teen
protagonizada por Connor, um jovem que com problemas em casa e no colégio
encontra no rock uma forma de resistir
as mesquinharias do cotidiano e de conquistar a garota dos seus sonhos, é
contada de forma saborosíssima e com uma saudável despretensão de superar
êxitos profissionais anteriores do diretor, o que não implica dizer, por outro
lado, que o longa-metragem seja simplório, pois, a despeito de ser um romance
musical, Sing Street não se esquiva de abordar assuntos
espinhosos, como bem observa André Bloc, in
verbis:
“o filme se empodera do chavão “boy meets
girl” para se mergulhar em uma trama genuína. [...] Um dos fatores mais
importantes e significativos do longa é o background, o terreno em que a trama
se desenrola. Conor (o ótimo Ferdia Walsh-Peelo) é um irlandês de 15 anos que
usa a música para emudecer as constantes brigas entre pai e mãe. Era crise na
Irlanda de meados da década de 1980 e vários irlandeses emigravam para a
Inglaterra em busca de uma oportunidade. Por falta de dinheiro, Conor muda de
uma escola jesuíta para um violento colégio comandado por um ditatorial padre
católico”¹.
A
forma despojada com que Carney trata seus personagens em meio as dificuldades socioeconômicas
por eles enfrentadas contrapostas a esperança de através da música serem
pessoas melhores assemelha Sing Street ao
também ótimo e igualmente ambientado na Irlanda The Commitments – Loucos Pela Fama
(Irlanda/Reino
Unido/EUA,1991) de Alan Parker, sendo estes exemplos de títulos que deixam o público imerso
nas trajetórias dos protagonistas, além de hipnotizado pelas trilhas sonoras
compiladas. É de se lamentar apenas que o trabalho de Carney não dê o devido
valor aos personagens coadjuvantes, circunstância que mesmo limitando o voo do
filme não reduz sua capacidade de agradar com esteio em um núcleo restrito de
figuras sobre as quais se debruça e que são, ao contrário das demais,
devidamente exploradas em suas ambiguidades e inquietudes sem que para tanto se
perca a leveza, característica que, dentro deste contexto, conforme analisa
Pablo Villaça:
“torna-se mais eficiente pela dor sempre
subjacente ao cotidiano de cada uma daquelas pessoas: [a musa] Raphina, por
exemplo, permite aos poucos que Conor (e o espectador) descubra detalhes de sua
infância, sugerindo um quadro de horrores sem precisar descrevê-los, enquanto o
agressivo Barry (Kenny), que tanto atormenta o protagonista, ganha contornos
inesperados quando temos a oportunidade de vislumbrar um pouco de sua dinâmica
familiar – e até mesmo o namorado de Raphina, que parece tão confiante ao
volante de seu carro, expõe um lado patético ao deixar o motor morrer diante do
rival.
[...] Da mesma maneira, John Carney
demonstra um cuidado particular ao sugerir a mudança gradual na maneira como
Conor enxerga Raphina: se inicialmente a vê idealizada, como uma musa
intocável, aos poucos passa a percebê-la como uma pessoa multidimensional e
cujas imperfeições não a deixam menos apaixonante – e reparem como o cineasta
ilustra este arco ao situar a garota, maquiadíssima, dois ou três degraus acima
do rapaz em suas primeiras conversas, apenas para trazê-la para o chão, com o
rosto lavado, à medida que fica mais ‘real’”².
Graças
a Sing Street John Carney assume o posto
de diretor que no momento melhor concilia cinema e música – posição até então
ocupada por Cameron Crowe – e, não fosse o bastante, ainda finca a respectiva
obra no rol de memoráveis realizações dedicadas aos anos 80, filão esse que
tanto agrada espectadores e, consequentemente, a indústria audiovisual a ponto
de abranger também trabalhos televisivos (Stranger
Things) e videoclipes (vide o revival
de Take on Me produzido pela banda Weezer).
__________
1. Sing Street: Música e Sonho: cumplicidade e arte. Disponível em: http://blogs.opovo.com.br/cinemaas8/2017/01/03/sing-street-musica-e-sonho-cumplicidade-e-arte/ . Acesso em 17/02/2019.
2. Sing Street. Disponível em: http://cinemaemcena.cartacapital.com.br/Critica/Filme/8332/sing-street . Acesso em 17/02/2019.
FICHA TÉCNICA
Direção, Roteiro: John Carney
Elenco: Ferdia Walsh-Peelo, Aidan Gillen, Maria Doyle Kennedy,
Jack Reynor, Kelly Thornton, Ian Kenny, Ben Carolan, Percy Chamburuka, Mark
McKenna, Don Wycherley, Des Keogh, Kian Murphy, Dolores Mullally, Lucy Boynton,
Marcella Plunkett, Vera Nwabuwe, Conor Hamilton, Karl Rice, Tony Doyle, Keith
McErlean, Peter Campion, Lydia McGuinness, Kyle Bradley Donaldson, Paul
Gibbons, Eva-Jane Gaffney, Paul Roe
Produção: Anthony Bregman, John Carney, Peter Cron, Kevin Scott
Frakes, Christian Grass, Jo Homewood, Martina Niland, Raj
Brinder Singh, Paul Trijbits, Mary Claire White
Fotografia: Yaron
Orbach
Montagem: Andrew Marcus , Julian Ulrichs
Trilha Sonora: Becky
Bentham
Design de Produção: Alan
MacDonald
Figurino: Tiziana Corvisieri
Estreia: 17/03/2016; 17/12/2016 (Brasil)
Duração: 106 min.
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