Shirkers – O Filme Roubado
Amargo Regresso
Na
Singapura do início da década de 1990 Sandi Tan, Jasmine Ng Kin Kia e Sophia Siddique Harvey se
matricularam em um curso livre de noções cinematográficas ministrado por Georges
Cardona, estrangeiro que se apresentava como um cineasta norte-americano de
prestígio disposto a ali ensinar seu ‘ofício’. Nesta toada, a circunstância de
tais fatos se passarem num período pré-internet, quando o planeta ainda não era
hiperconectado, colaborou para que o mitômano Cardona inventasse uma série de
histórias a seu respeito que costumavam encantar jovens sedentos por
informações do mundo ocidental e de culturas que tanto prezavam. Inebriada pela
cinefilia que aquelas aulas lhe proporcionavam, Tan não tardou a mostrar ‘Shirkers’,
um script ficcional de sua lavra, ao
mentor que, animado com o material, se dispôs a dirigi-lo enquanto aquela o
estrelaria e o produziria com o auxílio das amigas supracitadas.
Ocorre que
a empreitada empolgante acabou por ser tornar traumatizante graças ao caráter
errático de Cardona que costumava sabotar as criações de seus pupilos tão logo
percebesse a iminência de êxito dos mesmos e consequentemente de superação do ‘mestre’.
Incapaz de criar coisas originais - vide o exemplo da cena de Paris, Texas
por ele plagiada para fins de inclusão em ‘Shirkers’ - Cardona demonstrava ficar
extremamente incomodado com aqueles que conseguiam, deixando-se assim dominar por
um sentimento de inveja de proporções patológicas, reação que no caso do
trabalho produzido por Sandi Tan culminou no roubo por aquele de todo o produto
filmado, uma vez que se valendo da condição de responsável pela edição do copião,
Cardona desapareceu com todos os rolos de filmes que, desta feita, permaneceram
perdidos por décadas para a devastação de Sandi, Jasmine e Sophia.
Shirkers – O Filme Roubado (EUA,
2018) narra essa absurda e revoltante história sem, felizmente, cair numa armadilha
que ameaçava seu roteiro: a perspectiva de vitimização e/ou demonização em
demasia das partes que protagonizam o caso relatado. Para tanto, os desvios
morais de Cardona, por exemplo, são por vezes amenizados:
a) com fulcro no fascínio que despertava
em pessoas que, não obstante conhecedoras dos defeitos daquele, mesmo assim
conseguiam admirá-lo;
b) em decorrência de Tan remoer seu
lamento por ter sido mais uma vítima da crueldade de Cardona sem, contudo,
deixar de assumir sua:
·
parcela de culpa por de início ter sido ingênua e
adiante por ter sido cega e surda aos alertas feitos pelas parceiras de
trabalho quanto a possibilidade de aquele homem não ser confiável;
·
conivência quanto as situações de flerte que Cardona,
apesar de casado, criava - ainda que sem necessariamente possuir a intenção de
consumar qualquer relação física, pois, como adiante o filme aponta, o que parecia
de fato satisfazê-lo era a sensação de simplesmente encantar, hipnotizar mulheres
ao seu redor.
Tal
postura do documentário se revela primordial ao desenvolvimento da sua trama já
que em tendo sido realizado após o falecimento de Cardona, não poderia o
trabalho soar como um simples desabafo arquitetado para atacar quem nem mais
pode se defender, aspecto esse em que se destacam as falas de Jasmine e Sophia
que, décadas depois das filmagens do ‘filme roubado’, permanecem ressentidas
quanto a certas atitudes de Sandi que afirmam terem sido capazes de desgastar a
amizade das três mais do que a própria morte de ‘Shirkers’, o filho por elas
gerado.
Destarte,
o intuito de Shirkers – O Filme Roubado não se reduz a provocar
compaixão quanto a perda de Sandi e/ou indignação quanto aos atos manipuladores
e antiéticos de Cardona, ao passo que o documentário, mais complexo que esses triviais
objetivos, insiste, repita-se, em demonstrar as falhas também cometidas pela
mocinha nas órbitas pessoal e profissional, deslizes esses que se de um lado
não amenizam nem justificam o furto dos rolos de filmes, por outra banda
denotam o quanto tal vivência impôs àquela um amargo amadurecimento dado o desmoronar
de sonhos enfrentado que inevitavelmente a deixou durante muito tempo insegura
e distante anos-luz daquela impetuosa e prolífica jovem de outrora.
Dito isso,
merece igual destaque a forma com que a narrativa fora estruturada e montada,
afinal, apesar de a sinopse do título parecer não esconder surpresas, o
espectador não demora a detectar como falsa tal impressão, eis que ao longo do
desenvolvimento da obra o que se vê é um relato de conotação policial permeado
por um acurado estudo psicológico dos personagens principais, dentre os quais
se destaca, por óbvio, Cardona que Sandi tanto estuda no intuito de compreender
a motivação de seus atos. Em meio a essa investigação resta guardado um dos
principais trunfos da produção sacado na condição de cereja do bolo já próximo
ao término do filme: a satisfação da dúvida sobre como, malgrado desaparecidas em
1992, tantas imagens do material bruto de ‘Shirkers’ puderam ser inseridas no
documentário de 2018.
Por certo
existem pessoas que, insensíveis, julgam como superestimada a angústia
experimentada por Sandi, Jasmine e Sophia em virtude do roubo dos rolos de filmes de
‘Shirkers’, o longa-metragem no qual, ainda durante a transição da adolescência
para a fase adulta, empenharam suas economias, seu amor pelo cinema e seus anseios
profissionais em torno da sétima arte. Para os cínicos e não empáticos haverá
sempre uma dor maior e mais digna de reclamação do que a ‘mera’ frustração de
artistas, classe hoje em dia tão escarnecida pela onda conservadora que se
espalha mundo afora. Já para os que se sensibilizam com o sofrimento de Tan,
seja porque também são realizadores e entendem o quanto de carinho e de suor
envolve a feitura de um projeto artístico, seja porque são naturalmente solidários
aos reveses alheios, resta em Shirkers – O Filme Roubado uma experiência
comovente embora melancólica.
FICHA TÉCNICA
Título Original: Shirkers
Direção
e Roteiro: Sandi Tan
Elenco: Sandi Tan, Sophia Siddique Harvey, Georges Cardona,
Philip Cheah, Jasmine Ng Kin Kia, Stephen Tyler
Produção:
Sandi Tan, Jessica Levin, Maya Rudolph
Trilha Sonora:
Ishai Adar
Fotografia:
Iris Ng
Edição:
Lucas Celler, Sandi Tan, Kimberley Hassett,
Efeitos Visuais:
Lucas Celler
Estreia: 26/10/2018 (Netflix)
Duração: 96 min.
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