Democracia em Vertigem


Parcialidade em Demasia
Democracia em Vertigem (Brasil, 2019) analisa o que levou a saída do poder experimentada pelo Partido dos Trabalhadores através do impeachment de Dilma Roussef e da prisão de Luiz Inácio Lula da Silva.
Nesta toada, o longa-metragem não esconde sua afeição pelas lideranças do PT – daí a aproximação da diretora Petra Costa com um dos alvos de sua análise, Dilma Roussef, ser escancarada quando a primeira leva a mãe para conhecer a ex-presidente, tietagem que, há de se convir, faz cair por terra qualquer pretensão de imparcialidadeposicionamento que chega ao ápice quando em sua intermitente narração em voz over Costa afirma de maneira um tanto cafona que Lula é “Um escultor cujo material é a argila humana”.
É bem verdade que a cineasta toca em feridas referentes a atos questionáveis porque ilícitos e/ou contraditórios praticados pelo Partido dos Trabalhadores e seus integrantes quando na gestão do país, contudo, o faz de maneira calculada para atenuar a responsabilidade e assim fazer parecer com que são mais vítimas do que réus os ídolos por quem chora.
Dentro deste contexto, seu entusiasmo pela primeira eleição de Lula em 2002 logo é ponderado pelo reconhecimento entristecido das concessões feitas pelo político para poder chegar ao poder após 3 derrotas eleitorais: o ex-metalúrgico teve de, ao contrário do que bradava antes, suavizar o discurso, assumir um tom conciliatório e mandar recados de paz para banqueiros e empresariado.
Tais alianças permitiram que práticas antiéticas e de corrupção desde sempre entranhadas na política brasileira se repetissem na gestão lulopetista, o que acabou por desembocar no escândalo do mensalão muito brevemente citado por Petra, rapidez  que denota o quão incômodo o assunto é para seus partidários bem como a vontade de tapar o sol com a peneira e, assim, isentar o então Presidente da República de responsabilidade e de envolvimento em tal jogada - aliás, não é exagero dizer que Petra Costa demonstra mais indignação com a aliança firmada por Lula com o PMDB para fim de garantia de seu segundo mandato do que com o próprio mensalão, insatisfação essa que tem por causa o que viria a acontecer anos depois: o impeachment de Dilma por obra de traição, segundo a ótica da cineasta, de seu vice Michel Temer.

A documentarista segue seu relato enfatizando que o primeiro mandato de Dilma lhe rendeu tamanha popularidade e elogios que lhe fez se julgar capaz de bater de frente com o PMDB e com banqueiros, seja de um lado retirando cargos ocupados por membros do referido partido seja de outro lado questionando a política de juros, o que de acordo com Petra levou ao arrefecimento da economia, fazendo assim com que o governo fosse perdendo o apoio populacional maciço de outrora.
  Adiante, após fazer um resumo sobre a construção de Brasília como forma de introduzir na narrativa as figuras das empreiteiras que passariam a ser alvo da Operação Lava Jato, Petra diz em sua narração: “a classe política perpetuou um antigo sistema de interesses cimentado pela corrupção e esse sistema permaneceria intacto década após década até que veio o abalo sísmico”, leia-se, os protestos de 2013 contra o aumento das tarifas de ônibus e suas demais reivindicações difusas, processo que daria início ao acirramento da polaridade política e ideológica que assola o país desde então.
Em meio a esse quadro os casos de corrupção envolvendo elementos como Petrobrás, construtoras, caixa dois e políticos são apresentados por Petra Costa já sob o manto das medidas anti-corrupção tomadas pela presidente, sendo, em outras palavras, o remédio apresentado antes da doença para que essa não soe tão grave ou para que, novamente, não se tenha a impressão de que a pessoa que então exercia a presidência participou do imbróglio.
Em minuciosa coleta de imagens Petra insere depoimentos dados em delações premiadas que afirmam que o caixa dois era uma prática deveras comum e anterior a gestão do PT, dado ao qual é logo acrescentado que Dilma Roussef não interferiu nas investigações e que isso levou a sua queda, ou seja, a mea culpa é relativizada, abrandada em prol da narrativa do golpe, o que inclui alfinetadas para a mídia que, conforme a artista, naturalizou o caráter agressivo das manifestações pró-impeachment.
Em meio a ideia de que tanto Lula quanto Dilma foram alvos de injustiças Petra por vezes reconhece que o partido que lideravam teve sua quota de responsabilidade para a queda daqueles, daí afirmar: “Era triste ver um partido que elegemos na promessa de transformar o sistema se embrenhando numa estrutura promíscua de financiamento de campanha desenhada pra tornar qualquer mudança impossível”.
Destarte, a estratégia da cineasta para isentar de culpa seus ídolos é seguir salientando que:
- em nome da governabilidade foram obrigados a assumir o risco inerente a associações com pessoas e siglas que antes criticavam;
 - os atos que ensejaram suas derrocadas foram frutos das atividades dos opositores e de aliados que se revelaram maçãs podres.
Para sustentar o argumento da injustiça praticada contra seus heróis Petra intercala discursos de apoiadores beneficiados pelas ações afirmativas do governo lulopetista com falas de opositores integrantes da extrema-direita, construção maniqueísta que não só reforça a simplista divisão entre bem e mal como camufla a face corrupta daquela administração.
É certo que são inquestionáveis os podres dos opositores, assim como a boçalidade e ignorância dos asseclas de Bolsonaro, como bem demonstra o documentário, contudo não passa despercebido o quanto a balança sempre é mais desfavorável para esse lado dada a já citada falta de imparcialidade de Petra Costa. Tal postura da diretora inclusive compromete sobremaneira a credibilidade do filme, vide sua opção de, em prol do roteiro por ela escrito, alterar o teor de uma fotografia mostrada no documentário sem fazer qualquer ressalva sobre a interferência praticada, assunto que Thiago Coelho assim resume:
“Petra Costa recorre a imagens atuais e de acervos históricos. Na foto da Chacina da Lapa usada no filme, os objetos ausentes são um revólver Taurus, calibre 38, e uma carabina Winchester, calibre 44. As armas constam, porém, em uma fotografia anexada a um dos laudos da morte de Pedro Pomar, datado de 27 de dezembro de 1976 e arquivado no Instituto de Criminalística de São Paulo.
[...] Os indícios evidentes de que a cena do crime foi forjada pelos militares, colocando as armas perto dos militantes mortos, levaram Costa a apagá-las da fotografia usada em seu filme”.
Sobre o valor da medida tomada pela cineasta Eduardo Escorel comenta:
Se a foto original é uma encenação, a documentarista, exercendo uma onipotência, digna de quem faz cinema, decide não mostrar o conteúdo documental da foto. Essa decisão, num documentário ou não, pode ser considerada legítima desde que o espectador esteja informado sobre o que está vendo”².
A atitude de Petra, por óbvio, não se confunde, por exemplo, com a reconstituição de cenas pretéritas que Robert Flaherty praticara em Nanook, o Esquimó (1922) porque desse lado tem-se uma tentativa de reencenação da história enquanto Petra de outra banda tenta arbitrariamente corrigir a história, revisionismo que, é claro, visa favorecer uma narrativa que tende a manter acesa a chama da polaridade que tanto tem dividido o país.
Para quem desconhece a recente história nacional em detalhes Democracia em Vertigem soa sem dúvida como um trabalho poderoso que denuncia para o mundo a crise que o Brasil atravessa em seus âmbitos político, democrático, econômico, social, ideológico e moral. As imagens organizadas por Petra são fortes sendo compreensível, desta feita, que seu filme por motivos estéticos ganhe apoiadores mundo afora, pessoas essas que, repita-se, em não tendo ciência daquilo que fora jogado para baixo do tapete pela cineasta acabam encantadas e convencidas integralmente pela trama montada com parcialidade por aquela, resultado que pode até espelhar o objetivo da artista mas que se mostra aquém da oportunidade que a mesma tivera em mãos, isso porque Petra Costa, a despeito do acesso exclusivo que teve a cenas de bastidores em momentos cruciais da história nacional³, prefere se limitar a erguer um muro de lamentações deixando, por conseguinte, de esmiuçar a fundo as práticas de corrupção que igualaram o PT aos demais parasitas da República e que lhe tornaram uma decepção ante a esperança de moralidade que carregava consigo.
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1.Memória desarmada. Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/memoria-desarmada/?doing_wp_cron=1564504755.8553979396820068359375&fbclid=IwAR31YZ4cbDP_gjh_DiiJuyh2rfb-pAJaYwUo1M1LMLTgObA57iHz_HbZ-4M. Acesso em 01.08.2019.

2.Op. Cit.

3. Neste passo há cenas primorosas captadas como, por exemplo, a primeira eleição de Dilma quando essa para festejar vai ao encontro de Lula agradecer e diz para ele: “É presidente... O senhor inventou essa”.


FICHA TÉCNICA

Direção: Petra Costa
Roteiro: Carol Pires, David Barker, Moara Passoni, Petra Costa
Produção: Abigail Anketell-Jones, Joanna Natasegara, Mariana Oliva, Petra Costa, Sara Dosa, Shane Boris, Tiago Pavan
Fotografia: João Atala, Ricardo Stuckert
Trilha Sonora: Gilberto Monte, Lucas Santtana, Rodrigo Leão, Vitor Araújo
Montagem: Affonso Gonçalves, Bruno Jorge, Bruno Lasevicius, David Barker, Dellani Lima, Eduardo Gripa, Felipe Lacerda, Idê Lacreta, Isabelle Rathery, João Atala, Joaquim Castro, Jordana Berg, Karen Harley, Tina Baz, Virginia Primo
Estreia: 19/06/2019
Duração: 122 min.

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