Stromboli
Oscilação de Sentimentos
Stromboli (Itália, 1950) mantém foco exclusivo sobre sua personagem central, o que
nem poderia ser diferente já que se trata de um figura feminina rica em
particularidades e, por isso, capaz de ser tanto festejada quanto detestada
pelo público, resultado, há de se convir, nada fácil de ser obtido.
Dentro deste contexto, Ingrid Bergman
interpreta Karin, uma refugiada da II Guerra Mundial de origem um tanto
nebulosa já que a mesma parece alterar os fatos que circundam sua procedência
ao sabor das circunstâncias. Neste passo, tendo em vista que seu plano de
partir da Itália rumo a Argentina fracassa por questões burocráticas, só lhe
resta aceitar, por mera conveniência, o pedido de casamento precoce e ingenuamente
feito por um soldado italiano. Com pressa de sair do campo de refugiados para
um lugar melhor, a cobiçada mulher contrai o matrimônio e se muda para a terra
natal do consorte, lugar onde sua esperança de dias melhores se esvai ante
pobreza do lugar e a constante tensão provocada pela presença de um vulcão que
a qualquer instante pode entrar em erupção e causar mais uma vez a destruição do
vilarejo.
Irritada ao se deparar com tal realidade
a mulher não esconde seu desconforto e passa a, de maneira arrogante, atacar o
marido e todo seu carinho pelo povoado. Dito isso, chama atenção como o diretor
Roberto Rossellini consegue com extrema objetividade relatar toda essa
sequência de fatos em apenas vinte minutos, tempo esse em que também logra o
êxito de captar o interesse do espectador que já fascinado por uma figura tão
controversa como é a (assim desde logo mostrada) protagonista, passa aos poucos
a se compadecer da mesma ante a forma com que é tratada pelos aldeões: tal qual
uma forasteira cujas roupas e modo de agir não se encaixam nem são bem-vindos
naquela localidade.
Desta feita, Stromboli se mostra um filme feminista e, por
isso, vanguardista para o período, eis que insiste na manutenção da
personalidade da personagem que, rebelde, não baixa a cabeça para os ditames
patriarcais nem cede as imposições conservadoras de outras mulheres,
preferindo, ainda que por vezes de maneira instintiva e um tanto inconsciente,
radicalizar o seu comportamento, o que inclui não recusar a companhia de uma
prostituta e valer-se de sua própria beleza para fazer jogos de sedução que se
por um lado a entretém em meio ao ócio, por outro lado se revelam como arriscados
flertes com a infidelidade.
Felizmente, Rossellini toma o
cuidado de não permitir que a protagonista assuma o papel de vilã nem que o marido
tão dedicado ao sustento daquela seja visto como vítima, afinal, seu caráter
machista é devidamente destacado seja quando brincando ameaça surrar a ainda
pretendente, seja quando já casado com essa põe em prática a violência, o que
denota que o desvio de caráter é comum a todos na narrativa.
Neste diapasão, Karin não se impõe questionamentos de ordem
moral acerca da forma com que se aproxima de outros homens porque, a bem da
verdade, jamais amou o homem com quem casou, impressão atenuada adiante quando ou
por falta do que fazer ou porque de fato passara a gostar do esposo vai atrás
desse em seu trabalho em pleno alto mar, sequência que no âmbito do longa-metragem
possui dupla função:
I. ilustrar
o quão dúbia é a personagem - viés deveras corajoso que denota inclusive o comprometimento
de Ingrid Bergman perante seu ofício, pois, como sabido, a atriz abdicou das
benesses de Hollywood e dos trabalhos que ali pouco lhe acrescentavam artisticamente
para vivificar a polêmica e emblemática Karin, figura com quem a artista
acabara sendo confundida ante o relacionamento extraconjugal que passou então a
ter com Rossellini;
II. dialogar
em absoluto com a linguagem documental tão cara a estética neorrealista a qual
o filme se filia, vide as cenas que envolvem a pesca de atum - que impressionam
pela qualidade do material produzido a despeito dos parcos recursos técnicos da
época - atividade que dada a crueza envolvida leva a protagonista a perceber
que as dificuldades da vida em Stromboli seguem para além dos limites da ilha e
acompanham, sobretudo, seu companheiro onde quer que vá, o que impulsiona o
desejo daquela de fugir em busca, novamente, de melhores condições de sobrevivência.
Com efeito, Ingrid Bergman capta com precisão as vicissitudes
de um papel tão complexo e, ainda que por vezes exagere nos gestos, consegue o
trunfo mais difícil: fazer oscilar, como alhures já salientado, os sentimentos
da plateia quanto a aceitação de sua personagem¹, cujo desfecho em aberto
parece ter sido a solução menos arbitrária para um ser com capacidade de
despertar impressões tão díspares, daí ficar ao encargo de cada um atribuir a
conclusão que julgar melhor para tal figura.
________
1.
Sobre
o desempenho da atriz, Robledo Milani comenta: “Mestre do neorrealismo italiano, Rossellini
colocou a diva hollywoodiana no meio de uma minúscula ilha de pescadores
próxima à Sicília, todos, obviamente, não atores – ou intérpretes estreantes,
dependendo do gosto do freguês. É claro que ela odiou a experiência, ao menos
num primeiro momento. Pois, basta assistir ao resultado, para ver estampada no
rosto dela a exata expressão buscada pelo diretor neste conto de entrega e
danação. Fica tão claro, a cada fotograma, que Ingrid Bergman é a única artista
profissional do conjunto, que sua escolha para o papel não poderia ser mais
apropriada. Karin, sua personagem, é uma rebelde, aquela que não se encaixa,
que está a todo instante se esforçando para deixar em evidência o quão diferente
ela é de todos ao seu redor. Metade deste esforço é alcançado pelas escolhas do
diretor. A outra parte, é claro, recai sobre o inegável talento da atriz” (Disponível
em: https://www.papodecinema.com.br/filmes/stromboli/. Acesso em
01/04/2020).
FICHA TÉCNICA
Direção e Produção:
Roberto Rossellini
Roteiro: Art
Cohn, G. P. Callegari, Renzo Cesana, Roberto Rossellini, Sergio Amidei
Elenco:
Angelo Molino, Gaetano Famularo, Ingrid Bergman, Mario Sponzo, Mario Vitale,
Renzo Cezana, Roberto Onorati
Fotografia:
Otello Martelli
Trilha
Sonora: Renzo Rossellini
Montagem: Alfred
L. Werker, Roland Gross
Duração:
107 min.
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