Mignonnes
Mais Debate Menos Conservadorismo
A moldura do roteiro de Mignonnes (França, 2020) já foi vista diversas vezes em outras obras como, por exemplo, Aos Treze (EUA, 2003) e Anos 90 (EUA, 2018). Neste sentido, trata-se da tradicional história de protagonista que recém-chegada a uma nova comunidade encara problemas de entrosamento até ser adotada como mascote de um grupo de comportamento transgressor que acaba influenciando a novata a ponto de se tornar uma versão de si própria totalmente diferente daquela que as pessoas estavam acostumadas a ter, transição essa que inclui a ruptura com costumes e companhias de outrora.
Essa premissa serve de fio condutor para Mignonnes refletir sobre a sexualização precoce de crianças e adolescentes facilitada pelo acesso irrestrito a materiais impróprios para a referida faixa etária. Em não sendo isso uma total novidade, o filme acrescenta como agente colaborador para esse quadro a Internet que assume com força maior o papel antes exercido pela televisão, na medida em que mantém tais conteúdos, à distância de um clique, durante 24 horas, circunstância a qual se soma a dificuldade de controle parental ou ausência de interesse nesse sentido.
Destarte, é curioso como o longa-metragem demonstra a falta de senso do grupo feminino retratado acerca do quão inadequada e perigosa é a imitação de posturas e gestos dos maiores de idade, o que não quer dizer que sejam tratadas como figuras alheias a noções de erotismo. Neste diapasão, o que se vê é uma busca atabalhoada pela inserção no mundo adulto que colide com os poucos anos de vida das garotas, situação que as faz intérpretes não necessariamente de si mesmas, mas de personagens que pensam ser indispensáveis para imediata aceitação pela sociedade.
Trocando em miúdos, as “lindinhas” do título nacional repetem de forma robotizada comportamentos de massa que denotam uma busca por adequação e validação (pessoal e virtual) num grau capaz de causar o desmoronamento psicológico de quem ainda muito jovem não possui experiência nem discernimento suficientes para compreender que popularidade e felicidade não significam a mesma coisa, embora ambas possam ser alcançadas sem a prática de superexposição dos seus corpos.
Sem acompanhamento e aconselhamento, a entrada numa fase da vida na qual as alterações físicas nem sempre são seguidas no mesmo ritmo pelas mudanças da cabeça faz com que inúmeros adolescentes se valham de padrões delineados em mídias digitais numa corrida desesperada pela anuência dos outros, o que não raro desemboca em conflitos marcados pelo desconhecimento quanto a conceitos de empatia e sororidade, reforçando - como bem expõe a realização em comento - pensamentos arcaicos e machistas que objetificam a mulher desde muito cedo.
Para a protagonista de Mignonnes tamanhas descobertas são acompanhadas pelo choque cultural que marca a distinção entre seu lar no qual prevalecem tradições religiosas muçulmanas que reservam às mulheres um papel subalterno destinado a apenas aceitar aquilo que os homens impõem¹, ao passo que fora de casa a menina se depara com uma realidade ocidental libertária à qual se agarra com unhas e dentes e pela qual se propõe a fazer de tudo para permanecer a ela vinculada em trajes e modos.
Com efeito, o roteiro consegue alinhavar todas essas nuances com afinco, superando assim todo o perigo de fracasso existente. Explique-se: por muitos momentos é nítido o risco de a produção replicar aquilo que critica, contudo, eis que a diretora Maïmouna Doucouré aborda com notório cuidado a imagem das pré-adolescentes optando, assim, por cortes precisos que tanto destituem a composição imagética de qualquer toada fetichista quanto causam a sensação de incômodo exigida.
Além de bem escrito e editado, Mignonnes também conta com interpretações exemplares de um elenco que encara papeis dificílimos com absoluta naturalidade. Tamanha junção de qualidades denota que o filme está longe de ser o lixo dito por conservadores incapazes de respeitar a arte que propõe o debate e não o cancelamento do diálogo.
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1. Dentro deste contexto, merece destaque a observação de Gorete Frazão sobre o assunto: “No que tange à cultura islâmica, também são abordados problemas referentes à violência na adolescência. Essa abordagem é notada em como o corpo feminino é apresentado: coberto, restrito e servil. Nesse aspecto não posso deixar de lembrar que a violência também se faz presente nesse ambiente cheio de vestes e recato, quando meninas têm seus corpos e vidas entregues a casamentos arranjados por volta dessa mesma tenra idade, e onde não há espaço para suas necessidades como seres humanos. Ali há também um tipo cultural de objetificação velada. A violência é identificada em ambos os modelos culturais” (Disponível em https://www.planocritico.com/critica-lindinhas-mignonnes/. Acesso em 30/09/2020).
FICHA TÉCNICA
Direção e Roteiro: Maïmouna Doucouré
Elenco: Fathia Youssouf, Médina El Aidi-Azouni, Esther Gohourou, Ilanah Cami-Goursolas, Myriam Hamma, Maïmouna Gueye, Mbissine Thérèse Diop, Demba Diaw, Mamadou Samaké, Bilel Chegrani, Canelle Brival, Jean-Paul Castro, Hakim Ferhi, Michael Perez, Bass Dhem
Duração: 96 min.
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