M - O Vampiro de Dusseldorf

Obra Multifacetada  

O processo de caça e captura de um serial-killer é o assunto principal de M - O Vampiro de Dusseldorf (Alemanha, 1931). Apesar de aparentemente simples, tal mote funciona apenas como ponto de partida para a criação de uma narrativa que não se contenta enquanto mero suspense policialesco, preferindo, portanto, ir além ao aguçar relevantes reflexões sobre culpabilidade e o papel satisfativo da Justiça.
Mas, antes de adentrar nos significativos aspectos referentes ao conteúdo da obra, merecem registro as inovações técnicas de semelhante importância introduzidas por seu diretor Fritz Lang. Neste sentido, numa época em que a linguagem audiovisual ainda não era plenamente dominada pelos espectadores – ainda que inegáveis os avanços até então já delineados por D. W. Griffith – Lang ousa ao sugerir eventos não mostrados. Assim, a moléstia e o assassinato de cada criança raptada pelo criminoso restam subentendidas por meio da filmagem de balões que se perdem no ar ou de bolas esquecidas no passeio público - revelando, assim, uma espécie de variação do artifício que ficaria conhecido entre os teóricos soviéticos da montagem como Efeito Kuleshov.
A edição de M, dentro deste contexto, se mostra extremamente moderna seja pelo viés da sugestão outrora mencionado, seja por, numa determinada sequência, intercalar cenas das reuniões realizadas por policiais e criminosos em torno do objetivo comum de pôr as mãos no assassino. Desse modo, Lang atribui um caráter ideológico ao filme – postura essa, vale dizer, sempre defendida por Sergei Eisenstein em seus ensaios – afinal, a montagem paralela realizada entrega que lados da moeda supostamente distintos não raro se confundem quando os interesses em jogo são comuns, bem como logra êxito em levanta questionamentos acerca da moralidade que teoricamente caracteriza o Estado e seus representantes – daí muitos perceberem no longa-metragem certo ar profético e ao mesmo tempo amedrontado quanto ao mal que poderia vir a se concretizar – e se concretizou – a partir do domínio nazista¹.
Não fosse o bastante, Fritz Lang aproveita o advento do som no cinema para, ao invés de lotar de diálogo o filme – tal qual a tendência natural daquela época – para lançar Mao novamente do poder da sugestão ao utilizar o assobio do protagonista para que, desta feita, sua presença fosse sentida antes mesmo de presenciada, estabelecendo, por conseguinte, um tema musical específico para um personagem - recurso esse posteriormente chamado de leitmotiv em alusão a técnica recorrente nas óperas².
No que tange sua fotografia, M é um exemplo de esmero quanto a composição de tal elemento, o que pode ser confirmado quando, por exemplo, a câmera praticamente flutua passeando sem cortes no plano-sequência montado para cena filmada na associação de assistência aos desabrigados ou, ainda, através dos contrastes entre preto e branco característicos da estética expressionista – aspecto esse que pode, também, facilmente revelar (haja vista o gênero policial em que se encaixa a produção) uma faceta embrionária daquilo que viria a ser o cinema noir tão popularizado por Lang a partir do exílio vivido em Hollywood após a ascensão do reich alemão.
Esgotados os comentários sobre a tecnicidade de M, resta agora louvar o modo como Lang manipulou o plot central do roteiro para, ato contínuo, levantar reflexões sobre a eficiência do Poder Judiciário. Explique-se: quando o personagem de Peter Lorre é levado a julgamento pelos criminosos da cidade, percebe-se de imediato a natureza inquisitiva do processo, eis que todos já haviam tecido previamente sua própria sentença, nesse caso, condenatória, daí ser fácil perceber que a garantia de um advogado de defesa e do contraditório é dada ao infanticida (estuprador) apenas como forma de aplacar a consciência daqueles que almejam fazer justiça com as próprias mãos.
Nesta toada, os argumentos da “corte”, cabe ressaltar, coadunam sobremaneira com nossa atual realidade, uma vez que, para os acusadores, de nada adiantaria deixar aquele verme ser avaliado pela Justiça, oficialmente dita, pois, ainda que sua condenação fosse bastante provável, a reclusão se daria, por certo, num manicômio de onde o mesmo poderia até ser liberado caso demonstrasse melhora de comportamento. Por que, então, confiar no Judiciário? Quem hoje em dia nunca se fez tal questionamento?
Fritz Lang conduz todos a essa pergunta, até colocar na boca dos figurantes uma única palavra que nos leva a rever conceitos: “- Crucifica!”. Ao lembrar do calvário de Jesus Cristo, Lang deixa-nos sem iniciativa quanto ao ímpeto de condenar apressadamente, concluindo, assim, que lavar as mãos ou realizar pré-julgamentos sem a garantia de contestação ampla e irrestrita constitui ato capaz de confiar perigosa e ditatorialmente o poder entre poucos, o que, via de regra, descamba em erros, barbáries e/ou atrocidades históricas.
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1.    Não a toa o filme originalmente “seria chamado de The Murders are Among Us ("Os Assassinos estão Entre Nós"), o que poderia ser considerada uma referência a um grupo Nazista da época. Com medo de que reconhecessem tal referência, Fritz Lang acabou alterando o título para “M”, da palavra Murders. O filme foi baseado em um caso verídico, do assassino em série Peter Kuerten, na mesma cidade de Dusseldorf do filme, embora o roteiro tenha muitos elementos fictícios, e fale sobre um infanticida que vem aterrorizando as mães daquela cidade (o assassino original não matava crianças)”. FONTE: http://www.cineplayers.com/critica.php?id=1.
2.    FONTE: Almanaque do Cinema. Rio de Janeiro: Ediouro, 2009. p. 39

COTAÇÃO - ☼☼☼☼☼

Ficha Técnica
Título Original: M
Direção: Fritz Lang
Produção: Seymour Nebenzal
Roteiro: Paul Falkenberg, Adolf Jansen, Fritz Lang, Thea von Harbou
Elenco: Peter Lorre (Hans Beckert)Otto Wernicke (Inspetor Karl Lohmann)Georg John, Theo Lingen (Bauernfänger)Ellen Widmann (Frau Beckmann)Theodor Loos (Inspetor Groeber)Inge Landgut (Elsie Beckmann)Friedrich Gnaß (Franz)Fritz Odemar, Paul Kemp, Gustaf Gründgens (Schränker)
Fotografia: Fritz Arno Wagner
Duração: 117 minutos

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