Trapaça
Ambição
Admirável
Chamar David O. Russell de um cineasta
superestimado já se tornou clichê, apesar da veracidade da afirmação. Certas
qualidades suas, entretanto, não podem ser negadas, quais sejam a preocupação
de sempre pôr os personagens em primeiro lugar, bem como a forma como permite
que seus atores ousem, experimentem e, por conseguinte, brilhem, conforme assim
relatado por Jennifer Lawrence: “Ele dá
tanta liberdade que às vezes o que está no roteiro vira algo totalmente
diferente”¹.
Conhecedor de seu ponto forte, Russell
demonstra não temer a possibilidade de ser visto como um realizador dependente
do talento dos intérpretes e, desta feita, se vale da máxima “em time que está ganhando não se mexe” ao
escalar para Trapaça (EUA, 2013)
praticamente todos aqueles que em seus dois trabalhos anteriores foram
indicados/consagrados ao/com o Oscar². Desta feita, o diretor tem a sua
disposição
·
vindos de O Vencedor¹ (EUA, 2010): Christian Bale, como
sempre fazendo o que quer com seu corpo, e Amy Adams elevando a um grau ainda
maior a faceta sensual vista naquele filme;
· saídos de O Lado Bom da Vida (EUA,
2012): Bradley
Cooper mostrando outra vez que sob a batuta de Russell consegue alcançar notas
diferenciadas de interpretação, Jennifer Lawrence atestando ser a pessoa ideal
para as figuras insanas e bipolares das produções do diretor e Robert De Niro,
em uma espécie de aparição surpresa.
Como sabido, embora pecassem pela
postura formulaica de enredos envolvendo as trajetórias de superação de seres
fracassados, os dois últimos títulos dirigidos e roteirizados por Russell levaram
membros de seus elencos ao recebimento de diversas premiações. Logo, se não
conseguira nessas ocasiões chamar atenção pela originalidade de suas obras, o
cineasta, ao menos, fora saudado por arrancar interpretações fabulosas de seus
atores.
Com efeito, no caso de Trapaça, Russell se afasta das repetições narrativas de outrora e
envereda por um intricado jogo de aparências, mentiras e falcatruas. Neste
passo, embora não consiga manter durante toda a produção o mesmo fôlego de seu
início e de seu último quarto de duração – o miolo do longa-metragem transita
no campo da normalidade daquilo que é visto nos filmes de golpe – Russell
entrega o trabalho mais ambicioso feito desde o ótimo e já longínquo Três Reis (EUA, 1999), isso porque American Hustle é não apenas uma
história de trapaceiros como também é um filme de época, o que inclui todo um
apanhado de elementos culturais e comportamentais dos anos 1970, daí perceber-se
o esmero no que tange:
- o uso de uma fotografia granulada
e cheia de cores conectadas ao visual setentista,
- figurinos, maquiagens e
penteados que funcionam como personagens a parte tamanha a exuberância dos
mesmos,
.- a acertada, na maioria
das vezes, seleção e encaixe de hits musicais daquela década.
Tais recursos são reunidos em torno de uma toada
operística, propositalmente hiperbólica, pensada para tornar natural tanto as
condutas extremas dos personagens quanto as consequentes doses de humor decorrentes
de seus atos. E como Trapaça funciona
enquanto comédia! Sem apelar para piadas, Russell faz rir a partir de uma
espécie de exagero que não se confunde nem com o escracho nem com o nonsense – destacando-se neste aspecto,
frise-se outra vez, J. Lawrence, no auge da beleza, encarnando um tipo que
passeia entre a idiotice e a esperteza.
Por certo nas mãos de um diretor como
Martin Scorcese, Trapaça resultaria
mais sexy – ainda há certa hesitação
de Russell ao lidar com o erotismo – e denso – afinal, o esquema de corrupção
entre políticos e mafiosos não é aqui objeto de aprofundamento. Ocorre que, como já dito, para
Russell o que interessa é se debruçar sobre os
personagens, suas vicissitudes e conflitos internos e externos, daí que tudo
que os rodeia assume, de modo até compreensivo, um plano subalterno, cuja
função é servir de pano de fundo justificador de seus percursos errantes e de
toda a ironia deles advinda. E, a partir dessas eleições, o trabalho, apesar de
inconstante, resulta charmoso e eficiente, pois mesmo que Trapaça também seja um ‘filme de atores’, há em meio a essa
característica outros excelentes fatores técnicos – como a montagem e os outrora
citados – que juntos agregam ao produto final uma embalagem das mais sedutoras,
tornando-o marcante a despeito das ressalvas.
___________________________
1. Revista Preview. Ano 5. ed. 52. São Paulo:
Sampa, Janeiro de 2014. p. 26.
2. Exceto por Melissa
Leo, vencedora do prêmio de melhor atriz coadjuvante por O Vencedor.
3. Leia mais sobre O Vencedor e O Lado
Bom da Vida
em http://setimacritica.blogspot.com.br/2011/03/o-vencedor.html
e http://setimacritica.blogspot.com.br/2013/02/o-lado-bom-da-vida.html.
Ficha Técnica
Título Original: American Hustle
Direção: David O. Russell
Roteiro: Eric Singer, David O.
Russell
Produção: Richard
Suckle, Charles Roven, Megan Ellison
Elenco: Christian Bale, Amy
Adams, Jennifer Lawrence, Robert De Niro, Bradley Cooper, Jeremy Renner, Shea Whigham, Michael Peña, Louis C. K., Jack Huston, Paul Herman,
Matthew Russell, Anthony Zerbe, Alessandro
Nivola, Melissa McMeekin
Música: Danny Elfman Fotografia:
Linus Sandgren
Figurino: Michael
Wilkinson
Edição: Crispin Struthers, Alan Baumgarten, Jay
Cassidy
Estreia no Brasil: 07.02.2014 Estreia Mundial: 12.12.13
Duração: 138 min.
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