Azul é a Cor Mais Quente
Exercício de Imersão
Filmes voltados a
realizar anatomias de relacionamentos amorosos não são novidades. Nos últimos
anos, por exemplo, várias vertentes da temática foram lançadas, a saber:
·
Separados Pelo Casamento¹ (EUA, 2006) tratou a
questão dentro do formato da comédia romântica, ou seja, de maneira leve e bem
humorada;
·
Namorados Para Sempre² (EUA, 2011) – ao contrário
– mergulhou fundo na melancolia ao expor com notável veracidade o processo de formação
e degradação de uma relação a dois;
·
Ela (EUA, 2013), através de
uma inspirada metáfora sobre o quadro de isolamento, solidão a que estamos
destinados, ilustrou com precisão a etapa em que determinado elemento do casal evolui e
cresce ao ponto de não mais se sentir satisfeito por quem o ladeia até então.
Dentro deste contexto, Azul é a Cor Mais Quente (França, 2013)
se diferencia e se destaca ao acrescentar sobre a radiografia de um romance
fatores extras como a descoberta (simultânea) do primeiro amor e de uma
sexualidade distinta porque homossexual. Tais revelações, aliás, constituem a tônica
responsável por tornar a protagonista do longa-metragem tão fascinante, afinal,
o que se vê na tela é o amadurecimento e o definhamento não só de uma união mas
sobretudo de uma pessoa.
Assim, entre seus pares de mesma
idade, Adèle revela indiscutível superioridade intelectual, ao passo que em casa
mais parece a garotinha crescida dos pais que ainda mastiga de boca aberta e
dorme de jeito desengonçado. Em seu íntimo, porém, uma insatisfação adulta
lhe assusta: por mais que se entregue a garotos, falta a a adolescente algo que ela
suspeita saber. Adiante, ao adentrar num mundo novo no qual todos são mais
velhos, Adèle assume sem qualquer receio sua inexperiência e se torna, em
contrapartida, mais comedida do que antes ao emitir respostas e opiniões
invariavelmente cômicas que expõem tanto sua falta de conhecimento sobre as
coisas do mundo quanto o nervosismo ante aquilo que para ela se descortina. Neste passo, a medida
em que vai se entregando de corpo e alma para sua amada, Adèle se transforma numa mulher, alguém que agora faz as vezes de dona de casa, de
anfitriã dos amigos daquela e que também exerce um ofício remunerado ao longo do
dia.
Entretanto, como nada na
vida é perfeito, resta claro que as escolhas de Adèle a isolaram
daqueles com quem antes convivia. Seus pais não são mais vistos, as antigas
amigas de colégio a rechaçaram ante sua homossexualidade, daí que para ela o
mundo passa a girar em torno de seu par Emma. Esta, contudo,
experimenta um período profissional promissor e o
agarra com unhas e dentes, deixando, por conseguinte, de dar a mesma atenção de outrora
para Adèle que, insegura, sucumbe face a carência e, num misto ainda de
inexperiência quanto de desespero e dúvida, percebe o quanto sua opção sexual
não é estanque e sim volátil. Tal como ocorre com Eva após a prática
do ato proibido, o Éden no qual vivia Adèle desmorona por completo, momento em
que ela se torna adulta de uma vez por todas e passa a ser apenas uma sombra da
mulher exuberante que um dia fora³.
Tantas camadas e emoções, vale dizer, são alcançadas graças, principalmente, a duas pessoas:
· Adèle Exarchopoulos: atriz que acumula não só uma
beleza estonteante e despudorada quanto um incontestável e imenso talento dramático. Com efeito, Adèle – cujo prenome semelhante acaba, de forma curiosa,
por confundi-la com sua própria personagem – rapta para si toda e
qualquer atenção com um simples olhar ou movimento dos lábios. Não a toa, segundo o jornalista Rafael Nardini:
“A atriz carrega a marca indelével das
mulheres que sabem o quanto são maravilhosas. É aquela estirpe rara, capaz de
sugar nossa vida apenas com um olhar. [...] fixe-se apenas em seus olhos.
Pronto. Você está condenado a admirá-la para todo o sempre”⁴.
Eis, portanto, uma revelação como há tempos o cinema não via...
· Abdellatif Kechiche: responsável por
porporcionar ao espectador um exercício de imersão na trama e na vida das personagens,
daí ser possível testemunhar com mais de um sentido o que aquelas garotas
comem, bebem, fazem e sentem. Para tanto, o cineasta utiliza, numa quase intermitência,
closes e planos detalhes – aspecto esse em que, frise-se, demonstra inegável
generosidade e admiração para com suas atrizes e seus dotes físicos,
no que se ressalta Adèle Exarchopoulos e sua boca de compreensível apelo
fetichista. Acerca de seu modus operandi,
Kechiche assim esclareceu durante o último festival de Cannes:
“Os closes são mais expressivos e emocionantes e me
permitem capturar detalhes das expressões que embora vistos, não são percebidos
na vida real. [...] O close te força a estar tão próximo da verdade quanto
possível. Numa tomada mais de longe, alguém pode fingir que está comendo. Mas,
se você fizer um close da boca de alguém que come com apetite, o ator ou atriz
não pode fingir”⁵.
E é justamente em razão do interesse de Kechiche em conectar a experiência cinematográfica o mais
próximo possível da realidade que as cenas de sexo se mostram tão imprescindíveis ao longa-metragem.
Ao contrário do que muitos defendem, não se trata de uma prática voyeurística do
cineasta, mas sim da ilustração tal como é de algo comum em qualquer relacionamento:
o sexo, seja na duração do ato, seja na profusão de toques, carícias e
posições. Palmas, portanto, para Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux que não só compraram a
ideia do diretor como se entregaram sem amarras uma a outra proporcionando as
mais belas, excitantes e verdadeiras sequências de sexo já vistas no cinema. Neste contexto, cada
cheiro, tapa, arranhão na pele e gemido são provados pela plateia
que junto com a câmera se transforma quase que num terceiro elemento presente
na cama.
Dito isso, pobres daqueles que se sentem incomodados com o teor erótico da
produção, pois não compreendem nada de sua proposta nem percebem o porquê de
essa ser “A primeira grande história de amor do século XXI”⁶.
_____________________
1. Leia
mais sobre Separados Pelo Casamento em http://setimacritica.blogspot.com.br/2010/09/separados-pelo-casamento.html.
2. Leia
mais sobre Namorados Para Sempre em http://setimacritica.blogspot.com.br/2011/06/namorados-para-sempre.html.
3. Neste sentido, ao se manifestar em
entrevista sobre o processo longo e cronológico de filmagens, Adèle Exarchopoulos afirmou:
“eu estava tão exausta que eu acho que as
emoções vieram de uma forma mais livre. E não tinha maquiador, stylist ou
figurinista. De repente você consegue observar que os rostos foram ficando mais
marcadas (de cansaço). Nós filmamos cronologicamente, e isso ajudou porque eu
amadureci com as experiências que minha personagem teve” (FONTE: http://venenodebilheteria.wordpress.com/2013/10/05/a-polemica-de-la-vie-dadele-em-5-momentos/.
Acesso em 02.03.14).
4. Bom Dia, Adéle Exarchopoulos in http://papodehomem.com.br/bom-dia-adele-exarchopoulos/. Acesso em 28.02.14.
5. Revista Preview.
Ano 5. ed. 50. São Paulo: Sampa, Novembro de 2013. p. 57.
6. Andrew O’Heir in www.salon.com.
Direção: Abdellatif
Kechiche
Roteiro: Abdellatif
Kechiche, Ghalia Lacroix
Elenco: Adèle
Exarchopoulos, Léa Seydoux, Aurélien Recoing, Catherine Salée, Alma Jodorowsky,
Anne Loiret, Salim Kechiouche, Mona Walravens
Fotografia:
Sofian El Fani
Edição: Ghalia
Lacroix, Albertine Lastera, Jean-Marie Lengelle, Camille Toubkis
Estreia no Brasil: 06.12.2013 Estreia
Mundial: 09.10.2013
Duração: 179
min.
Achei realmente genial esse filme. Os closes nos dão a impressão de estarmos mais perto, fazendo parte da trama. E vc reparou com o tom azul predomina no filme? nas roupas, na parede, no cabelo.. Ora azul claro, ora azul escuro.
ResponderExcluirO filme não conta a história de um relacionamento lésbico, conta a história de vida de Adele, onde a gente imerge e torce pra que ela tenha seu final feliz com Emma.
Sim, a riqueza de detalhes quanto aos objetos cenográficos de cor azul impressiona, tal como, por exemplo, na sequência da praia.
ExcluirHá outro filme que também se vale de uma paleta azul e o faz igualmente com perfeição; é Mr. Nobody. Você já viu?
Ainda não vi. Tem link pra ver?
ResponderExcluir