Samba
Globalização
e Miscigenação
Aviso aos navegantes: o texto a
seguir, de maneira incomum ao que é rotineiramente publicado nesse espaço, terá
consideráveis frações escritas em primeira pessoa. A opção por tal estilo
redacional haverá de se justificar ao longo da análise, senão vejamos...
Após assistir Samba (França, 2014) uma amiga enviou para mim o seguinte
julgamento: trata-se de um “filme
americano, falado em francês com música brasileira”. Ciente de que a trilha
musical integrada, dentre outras, por canções de Gilberto Gil e Jorge Ben Jor
possui a devida explicação dentro da narrativa, passei a refletir sobre a
primeira parte do comentário e a indagar até onde vai sua procedência e quais
os efeitos, se positivos ou negativos, da suposta miscigenação fílmica
detectada. Dito isso, eis o fundamental questionamento em torno do assunto: o
fato de um filme europeu apresentar nítidas influências hollywoodianas depõe
contra sua essência?
Inicialmente cabe lembrar que a
linguagem arquitetada pelo cinema de Hollywood fora forjada ao longo de décadas
num processo que recebeu a colaboração de muitos cineastas europeus que para lá
migraram principalmente as vésperas da II Guerra Mundial. A partir desse
emaranhado de influências, fórmulas foram sendo engendradas e utilizadas de
maneira exaustiva a ponto de agregar um tom jocoso a expressão “filme americano”.
Seja como for, graças ao poder de
abrangência com que atinge quase todos os cantos do planeta, o cinema
norte-americano, para o bem ou para o mal, acaba influenciando o cinema de
outros países, o que não necessariamente há de ser visto com olhos ressabiados
contanto que as referências sejam bem trabalhadas e adaptadas, na medida do
possível, a realidade local. Mostras como o Festival Varilux de Cinema Francês,
dentro deste contexto, servem para exemplificar como o cinema francês se
afastou do tom rebuscado da época da Nouvelle Vague para, em contrapartida,
adotar uma toada mais universal – principalmente no que tange o campo da
comédia romântica – face a utilização duma linguagem em muito semelhante a da
indústria americana, sem deixar, em grande parte dos casos, de garantir a
devida pitada de nacionalidade ao produto, seja, por exemplo, mediante um
refinamento maior do humor seja através da parcimônia com que busca conquistar
o público.
Com efeito, Eric Toledano e
Olivier Nakache já haviam mostrado no estrondoso sucesso Intocáveis¹ (França, 2011) a capacidade
de enquadrar num estilo particular um jeito americano de contar uma história.
Ao modo Rain Man (EUA, 1988) os
cineastas investigaram meandros da amizade masculina e das dificuldades
enfrentadas por deficientes físicos sem deixar que seu trabalho soasse como
mais do mesmo. A influência, neste passo, fora facilmente identificada sem,
entretanto, tornar invisível a personalidade própria do trabalho graças, em
grande parte, ao talento da dupla para fazer humor com assuntos sisudos sem
incorrer na banalização – algo que Roberto Benigni não conseguira fazer no
superestimado A Vida é Bela (Itália,
1997).
Em Samba, os diretores novamente se valem de uma estrutura fílmica
hollywoodiana para brincar, no bom sentido, com tema ainda mais delicado e
amplo quanto ao raio de envolvidos, qual seja a questão da imigração ilegal que
tanto incomoda os países desenvolvidos – problema que os Estados Unidos, aliás,
pouco tratam cinematograficamente².
Em se tratando da adaptação de uma
obra literária, Toledano e Nakache realizam as alterações que entendem
necessárias sobre o texto de origem e se esmeram em garantir uma levada bem
humorada ao assunto, espinhoso por natureza, tratado. Porém, de forma inversa a
praticada em Intocáveis, o humor dessa
vez não dá as caras de imediato, sendo construído paulatinamente ao ponto de
ensejar a dúvida: seria o longa-metragem um drama com leves tons de comédia ou
seria, ao contrário, uma comédia preponderante – ainda que mais compassada que
o habitual no gênero – que por vezes revela alguns tons dramáticos?
Seja qual for a resposta, o
questionamento, em seu bojo, exacerba aquilo que faz o “filme americano falado em francês” se mostrar realmente europeu:
não há pressa em envolver o espectador, sendo isso uma conseqüência do correto
desenvolvimento da trama e do apropriado cuidado dispensado aos personagens –
muito bem interpretados, ressalte-se, por um elenco não menos que impecável, no
que se destaca Tahar Rahim revelando um inesperado talento para a comédia.
Em um tempo tão globalizado como o
atual, Samba incorpora as várias
nacionalidades de seus personagens e se comporta como um produto multinacional,
para a aflição de quem ainda vê o cinema francês como a arte de estética
intimista, minimalista e por vezes meândrica dos anos 1950 e 1960. O passado
não volta e o presente há de ser encarado seja isso bom ou não. E Samba é ótimo.
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1. Leia mais sobre Intocáveis em
http://setimacritica.blogspot.com.br/2012/04/cabra-marcado-para-morrersantiago.html.
2. Neste
sentido, seguem links com exemplos de alguns dos poucos títulos norte-americanos que abordam o tema da
imigração ilegal: http://50anosdefilmes.com.br/2009/o-cinema-e-uma-arma-quente-contra-o-racismo-e-a-xenofobia/ http://listasde10.blogspot.com.br/2010/11/10-filmes-sobre-imigracao.html.
FICHA TÉCNICA
Direção: Eric Toledano, Olivier Nakache
Roteiro: Eric Toledano, Olivier Nakache
Elenco: Charlotte Gainsbourg, Christiane
Millet, Clotilde Mollet, Hélène Vincent, Isaka Sawadogo, Izïa Higelin,
Jacqueline Jehanneuf, Liya Kebede, Omar Sy, Sabine Pakora, Tahar Rahim, Youngar
Fall
Produção: Laurent Zeitoun, Nicolas
Duval-Adassovsky, Yann Zenou
Fotografia: Stéphane Fontaine
Montador: Dorian Rigal-Ansous
Trilha Sonora: Ludovico Einaudi
Duração: 120 min.
Estreia: 09/07/2015 (Brasil)
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