Livre / Na Natureza Selvagem / O Homem Urso



Desafiando Limites

Para muitos Livre (EUA, 2014) é deveras parecido com Na Natureza Selvagem (EUA, 2007). Embora seus protagonistas tenham abdicado de qualquer conforto em prol de um contato direto com a natureza, seus motivos e objetivos traçados a partir de então não poderiam ser mais distintos. No caso do primeiro título, Cheryl Strayed - interpretada com êxito por Reese Witherspoon - busca uma viagem de cura para sua crise existencial. Após destruir o casamento em razão da dependência química e de uma promiscuidade em grande parte acarretada por um sentimento de culpa, a personagem percebe que precisa se redefinir, reinventar para em seguida voltar ao convívio social. Para tanto, Cheryl se empenha em fazer a tortuosa trilha Pacific Crest Trail, caminho de 1700 quilômetros que atravessa os Estados Unidos e chega ao Canadá, percorrido em meio as não menos incômodas lembranças do passado que a forçam a lidar com os próprios demônios.

Por seu turno, Christopher McCandless, protagonista de Na Natureza Selvagem busca o isolamento na natureza não para expiar seus pecados e sim para não ter mais de lidar com a hipocrisia da sociedade e, sobretudo, de seus pais, razão pela qual o que implementa é um estilo de vida e não uma viagem com prazo determinado para acabar. Dentro deste contexto, foram os males sofridos na infância que levaram Chris a uma fuga por vezes até egoísta dado o desdém para com aqueles que se preocupam com seu desaparecimento. Essa deliberada intenção de abandonar a civilização em busca de um mundo primitivo salta aos olhos em um de seus escritos a saber: “Sem continuar a ser envenenado pela civilização, ele foge e caminha solitário pelo mundo para se perder em meio a natureza”. Tal apreço pelo meio ambiente em seu estado bruto afasta Christopher de Cheryl - cujo anseio pelo fim da trilha percorrida era manifesto - e, em compensação, o aproxima de Timothy Treadwell, ambientalista devorado vivo por ursos no mesmo Alasca desbravado por Alexander Supertramp – pseudônimo de Christopher.
A história de Treadwell fora habilmente contada por Werner Herzog no ótimo O Homem Urso (EUA, 2005), documentário que, apesar de todo o carinho demonstrado pelo biografado através da narração de Herzog, não se exime de demonstrar o equívoco do pensamento do ativista ao tentar não só conviver mas se comportar como um urso. Assim, o desrespeito daquele ser aos limites territoriais existentes de maneira invisível entre homens e ursos, bem como a falácia de que agia sempre sozinho – quando sabido é que não raro desfrutava da companhia de namoradas em seu acampamento – além do histórico envolvendo abuso de drogas e alcoolismo são manchas que Herzog não esconde, mas que também não se sobrepõem ao amor desmedido daquele homem pelos animais, algo que o deixava cego aos perigos decorrentes de condição de vida tão sub-humana e arriscada para quem não crescera nesse meio – nesta toada, tal insensatez ante os perigos da vida selvagem também foram comuns ao supracitado Christopher McCandless que no afã de viver da natureza acabou vitimado por ela.

Frise-se que as doses de emoção aplicadas por Herzog no documentário – gênero via de regra formal em virtude da busca pela objetividade – também são administradas em Na Natureza Selvagem por Sean Penn que atinge a maturidade como cineasta ao relatar uma história extremamente dramática sem soar piegas nem condescendente, o que é fruto, dentre diversos motivos, de uma narração em voz over muitíssimo bem utilizada na medida em que não se revela redundante, acrescentando, em contrapartida, informações e opiniões necessárias a construção completa da persona de Christopher, daí este resultar numa figura verossímil e não totalmente idealizada. Ademais, considerando que a trilha sonora é composta por diálogos, ruídos e músicas, há de se destacar, além da mencionada fala over, as saudadas canções originais de Eddie Vedder que se coadunam com o pensamento de Chris embalando com poesia as belas imagens registradas por Penn.
Na Natureza Selvagem, dentro da análise comparada ora feita, possui ainda um diferencial todo seu: o louvável aprofundamento e aproveitamento de cada um dos personagens coadjuvantes vividos com brilhantismo por um elenco de peso que reúne nomes como William Hurt, Kristen Stewart, Catherine Keener, Hal Holbrook, Jena Malone, Marcia Gay Harden, Vince Vaughn e Zach Galifianakis (irreconhecível com o rosto sempre coberto). Neste sentido, o longa-metragem baseado na obra de Jon Krakauer também se comporta como uma história de encontros, tendo um por um a devida importância e relevância para a jornada, característica que não é vista em Livre, já que pouco relevo é percebido naqueles que cruzam o percurso de Cheryl Strayed. Mesmo que retratada a tristeza em torno de seus encontros sexuais, das memórias da mãe recentemente morta, e dos contatos feitos com alguns poucos durante a trilha percorrida, quase nada se sabe sobre aquelas outras pessoas, o que contribui para manter fria a caminhada de Cheryl, diferentemente do que faz Sean Penn ao banhar em lágrimas, sem melodrama, cada despedida entre Christopher e seus amigos de estrada.

 Neste aspecto, O Homem Urso ouve com atenção as principais pessoas que estiveram ao lado de Timothy Treadwell, porém, sem dúvida, toda carga emocional do filme recai sobre ele e seus venerados ursos. Desta feita, a mente confusa daquele homem e a constante ameaça que os animais representam para sua sobrevivência envolvem o público de forma tal que em nada interfere o desfecho ser apresentado logo nos primeiros minutos da obra. Aliás, em se tratando de produções sobre três casos verídicos, o que se atesta em todas é a pouca importância do término, afinal por mais conhecidos de antemão que estes sejam é aquilo que acontece antes que realmente interessa. É o caminhar que traz provações, revelações e faz o espectador experimentar, ainda que pela tela, o que é estar entregue sozinho numa natureza dura porque primária, selvagem e desafiadora de qualquer limite.

FICHA TÉCNICA - Livre


Título Original: Wild

Direção: Jean-Marc Vallée

Roteiro: Nick Hornby baseado na obra de Cheryl Strayed

Elenco: Reese Witherspoon, Laura Dern, Brian Van Holt, Charles Baker, Gaby Hoffmann, Kevin Rankin, Michiel Huisman, W. Earl Brown

Produção: Bruna Papandrea, Reese Witherspoon

Fotografia: Yves Bélanger

Montagem: Jean-Marc Vallée, Martin Pensa

Estreia: 15/01/2015 (Brasil)

Duração: 116 min.



FICHA TÉCNICA – Na Natureza Selvagem


Título Original: Into the Wild

Direção: Sean Penn

Roteiro: Jon Krakauer, Sean Penn

Elenco: Emile Hirsch, William Hurt, Kristen Stewart, Brian Dierker, Catherine Keener, Dan Burch e Joe Dustin, Hal Holbrook, Jena Malone, Marcia Gay Harden, Vince Vaughn, Zach Galifianakis

Produção: Art Linson, Sean Penn, William Pohlad

Fotografia: Éric Gautier

Trilha Sonora: Eddie Vedder, Kaki King, Michael Brook

Estreia: 22/02/2008 (Brasil)

Duração: 142 min.



FICHA TÉCNICA – O Homem Urso


Título Original: Grizzly Man

Direção: Werner Herzog

Roteiro: Buck Henry, Michal Zebede

Produção: Erik Nelson

Fotografia: Peter Zeitlinger

Trilha Sonora: Richard Thompson

Duração: 103 min.

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