Que Horas Ela Volta? / Casa Grande



Entre a Sala e a Cozinha

Muito já se falou sobre as semelhanças entre Que Horas Ela Volta? (Brasil, 2015) e Casa Grande (Brasil, 2014); a própria diretora daquele primeiro, Anna Muylaert, assim, por exemplo, já declarou:
“Eu era jurada no Festival de Paulínia quando assisti ao filme e entrei em choque achando que ele [Fellippe Barbosa] havia feito o meu filme, mas na segunda metade Casa Grande vai para um lugar muito diferente [...] Conversei sobre isso com o próprio Fellippe, pois o protagonista dele olha o problema a partir da sala e a minha olha a partir da cozinha”¹.
  Dito isso, além de discorrerem sobre o choque de convivência entre a elite e a classe periférica, o que os dois filmes mais tem em comum é o posicionamento favorável a política social implementada pelo governo federal nos últimos anos². E é a partir do alinhamento de seus discursos que cada uma das obras toma caminho inverso ao da outra, afinal, enquanto Casa Grande fala sobre o declínio financeiro de quem antes era abastado, Que Horas Ela Volta? se preocupa mais em analisar a ascensão - ainda que não necessariamente material, mas , sobretudo, comportamental - de um grupo desprivilegiado cuja educação tivera ligeiras melhoras.
Neste diapasão, Muylaert poderia até se valer do didático debate sobre a política de cotas mostrada em Casa Grande, porém, a cineasta prefere o caminho da suavidade ao lembrar sem alarde que o pobre que agora já possui chance de alcançar o ensino superior é o mesmo que também já pode se dar ao luxo de viajar de avião. Assim, a artista garante a longevidade de sua história ao invés de torná-la pontual e datada como feito por Barbosa em determinadas sequências de seu trabalho, atitude essa que, vale dizer, denota maior compromisso com a defesa panfletária de seus ideais do que com a narrativa fílmica. Por isso, correta a conclusão de Edu Fernandes a seguir transcrita:
“Que Horas Ela Volta? não conseguiria levar sua mensagem longe se o tom do longa fosse tão contundente quanto os questionamentos de Jéssica. O roteiro encontra momentos de leveza na relação de afeto entre Val e Fabinho e de comicidade na figura de Edna (Helena Albergaria), colega de trabalho da protagonista.
Assim, pode se dizer que se trata de um filme acessível, tanto no nível de compreensão da história quanto no tom leve que seu discurso é entregue. É esse tipo de produção que deve defender nossa cinematografia no exterior e alimentar discussões importantes dentro de nossas fronteiras”³.
Dentro deste contexto, embora tenha viés um tanto autobiográfico, o olhar de Barbosa tenta ser o menos próximo e íntimo dos personagens, numa busca pela objetividade que cai por terra nos momentos em que seu posicionamento político é escancaradamente revelado. Muylaert, ao contrário, demonstra imenso carinho para com as figuras por ela criadas, tornando suas trajetórias convidativas para quem assiste. Destarte, sem argumentação de palanque, a cineasta vai levando cada espectador a tecer as próprias reflexões sobre igualdade de oportunidades e inconformismo perante as limitações sócio-econômicas.
Casa Grande e Que Horas Ela Volta? ainda tratam do embate geracional vivido entre pais e filhos, graças a forma com que estes últimos lidam com maior tranqüilidade com as peculiaridades de uma época em que as pessoas se descobrem menos submissas ante as imposições e pensamentos de outrora, enquanto os mais velhos suam para se manter fieis as convicções com que foram criados, no que se inclui o respeito irrestrito a pirâmide social e sua pretensa imutabilidade.
Em razão de dispor de personagens mais fortes e interessantes, Que Horas Ela Volta? novamente apresenta maior relevância do que Casa Grande, isso porque se de um lado o protagonista deste deflagra o conflito cultural entre classes por conta de um namorico com uma garota pobre e em virtude da mesada que começa a rarear na carteira, no longa-metragem de Muylaert tem-se Jéssica, a filha da empregada doméstica que desperta incômodo por não se sentir inferior aos patrões de sua mãe e por ir em busca, com êxito, de condições de vida mais dignas através do ensino superior cujas vagas antes não eram obtidas por pessoas de sua classe. Neste passo, Jéssica agarra com unhas e dentes a oportunidade que tem de adentrar numa faculdade pública ao passo que Jean (Thales Cavalcanti) - protagonista de Casa Grande - se permite abandonar a prova do vestibular em virtude de no momento estar abalado emocionalmente, contraste esse que denota tanto as diferentes óticas de cada filme como o grau não equivalente de valor dos personagens, pois se para uma não há tempo a perder para o outro um ano de atraso nos estudos não implica prejuízo tão grande, daí estar correta a observação de Muylaert ao dizer que sua protagonista age a partir da cozinha e o do filme de Barbosa vê a banda passar no sofá de sua sala.
Casa Grande volta sua atenção para a elite descapitalizada, opção logicamente válida e até saudável considerando que o foco do cinema brasileiro das últimas décadas é rotineiramente voltado para a favela; contudo, no âmbito da comparação cinematográfica, o produto final de Fellippe Barbosa não provoca o mesmo clamor sutilmente provocado por Que Horas Ela Volta? e suas sofridas mulheres de baixa renda que paulatinamente vão galgando novos degraus - lembre-se que o ser humano possui a natural tendência de torcer pelo time mais fraco em detrimento da equipe mais exitosa e bem estruturada.
Outro fator que torna Que Horas Ela Volta? imprescindível é o elenco, pois se em Casa Grande os atores profissionais e não-profissionais tem performances que não comprometem nem saltam aos olhos, na produção de Muylaert há a arrebatadora dobradinha de Regina Casé e Camila Márdila totalmente imersas em seus papeis. A primeira afasta qualquer traço da persona utilizada em seu programa de TV dominical compondo, desta feita, uma mulher fatigada pela vida e perdida em meio ao contato retomado com a filha que lhe é tão diferente e estranha em sua conduta desafiadora, ao passo que Márdila acerta o tom da garota inconformada sem estereotipá-la, descortinando suas nuances numa evolução hipnotizante que garante a complexidade dos arcos dramáticos pensados por Anna Muylaert em seu enredo aparentemente simples que na verdade detém inconteste profundidade seja em razão da concepção psicológica de seus personagens seja em decorrência das discussões sociais levantadas.
Ainda que sua respectiva representante cinematográfica não se preste a servir de defesa para a elite brasileira, a casa grande, dessa vez, saiu derrotada pela senzala. Coisas que o cinema permite...
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1.     Revista Preview. Ano 6. ed. 71. São Paulo: Sampa, Agosto de 2015.  p. 34.
2.     Não a toa, Edu Fernandes assim escreve: “Um filme pode ser um retrato da sociedade na qual foi concebido. Que Horas Ela Volta? certamente reflete o Brasil contemporâneo e questiona as castas sociais que começam a roer no País” (FONTE: http://www.cineclick.com.br/criticas/que-horas-ela-voltai. Acesso em 06/10/2015).
3.     FONTE: http://www.cineclick.com.br/criticas/que-horas-ela-voltai. Acesso em 06/10/2015.

FICHA TÉCNICA – QUE HORAS ELA VOLTA?


Direção e Roteiro: Anna Muylaert

Elenco: Alex Huszar, Anapaula Csernik, Antonio Abujamra, Audrey Lima Lopes, Bete Dorgam, Camila Márdila, Helena Albergaria, Hugo Villavicenzio, Karine Teles, Lourenço Mutarelli, Luci Pereira, Luis Miranda, Michel Joelsas, Nilcéia Vicente, Regina Casé, Roberto Camargo, Thaise Reis, Theo Werneck

Produção: Anna Muylaert, Débora Ivanov, Fabiano Gullane, Gabriel Lacerda

Fotografia: Bárbara Álvarez

Montagem: Karen Harley

Trilha Sonora: Fábio Trummer

Estreia: 27/08/2015 (Brasil)

Duração: 114 min.



FICHA TÉCNICA – CASA GRANDE


Direção e Roteiro: Fellippe Barbosa

Elenco: Bruna Amaya, Clarissa Pinheiro, Georgiana Góes, Marcello Novaes, Suzana Pires, Thales Cavalcanti

Produção: Clara Linhart, Iafa Britz

Fotografia: Pedro Sotero

Montador: Karen Sztajnberg, Nina Galanternick

Estreia: 16/04/2015 (Brasil)

Duração: 115 min.

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