Uma Mulher Fantástica

Anticlímax e Eufemismo

A cena: Após a morte de seu companheiro, a transexual Marina Vidal se torna alvo do preconceito da família daquele que, além de afastá-la de todos os pertences e até do animal de estimação deixados pelo falecido, a impedem de comparecer ao seu velório e enterro. Cansada de tanta humilhação a personagem resolve desafiar as proibições que lhe foram impostas e vai até o cemitério onde será cremado o corpo de seu amado, ocasião em que se depara com os parentes do mesmo e os interpela chegando ao ponto de subir no teto do carro por eles ocupado e ali ficar pulando e gritando a plenos pulmões suas insatisfações.

O filme: Uma Mulher Fantástica (Chile, 2017).
Considerações: O oscarizado trabalho de Sebastián Lelio acertadamente apresenta uma protagonista que reage aos cotidianos atos de preconceito experimentados de forma aparentemente serena, sem espalhafato, isso porque se trata de alguém que aprendera a sofrer em silêncio e a não externar sua dor e revolta a cada vez que é desrespeitada por sua identificação de gênero. Engolir em seco os abusos parece ser a forma mais prática de seguir a vida, ainda que não falte gente para tentar estagná-la. Quando enfim explode, o ato tomado nesse sentido pela personagem no interior de um cemitério soa, infelizmente, aquém de tudo que lhe motivara, o que pode ser visto como uma:
- deficiência da transexual que de tão acostumada a baixar a cabeça e ouvir quieta os desaforos a ela dirigidos já não detém mais a capacidade de se rebelar à altura ou

- falha narrativa do roteiro de Gonzalo Maza e Sebastián Lelio que espalham pela história passagens anticlimáticas talvez voltadas a funcionar como espelho do comportamento da personagem principal, mas que acabam retirando da obra um considerável punhado de vigor.
Aliás, parece claro que Uma Mulher Fantástica dispunha de capacidade para impactar tal qual o soco no estômago que, por exemplo, Meninos Não Choram (EUA, 1999) conseguira ser; lamentavelmente, contudo, o longa-metragem fica no meio do caminho, tal como percebido em sequências que muito prometeram e pouco cumpriram – vide os casos da tomada supracitada e da entrada da protagonista em uma sauna frequentada pelo parceiro enquanto vivo. Dentro deste contexto, até mesmo a cena mais impactante do filme e que denota todo o potencial por ele não aproveitado a contento, qual seja a do ataque com fita adesiva feito contra a protagonista, revela certo pé no freio – embora, para não caracterizar como injusta a análise, seja necessário considerar a hipótese de retratar tão somente o limite de brutalidade ao qual os agressores se permitiram chegar em tal instante.  
A insatisfação que o título causa, ressalte-se, não há de ser compreendida como fruto de um clamor sádico por violência, mas sim como resultado da inquietude provocada pela pitada de eufemismo por vezes aplicada na exposição do preconceito e da rejeição. Ainda que palavras, insinuações e acusações levianas sejam capazes de doer na alma, parece discutível a minimização dos atos animalescos que, como sabido, atentam contra a integridade física de integrantes da comunidade LGBT no mundo real¹.
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1.Neste sentido, sugere-se a leitura do texto Mapa de direitos LGBT e dados sobre violência mostram divisões e contradições Luís Guilherme Julião disponível em http://blogs.oglobo.globo.com/na-base-dos-dados/post/mapa-de-direitos-lgbt-e-dados-sobre-violencia-mostram-divisoes-e-contradicoes.html. Acesso em 18.03.2018.

Ficha Técnica

Título Original: Una Mujer Fantástica

Direção: Sebastián Lelio
Elenco: Alejandro Goic, Aline Küppenheim, Amparo Noguera, Antonia Zegers, Cristián Chaparro, Daniela Vega, Diana Cassis, Eduardo Paxeco, Erto Pantoja, Fabiola Zamora, Felipe Zambrano, Francisco Reyes, Loreto Leonvendagar, Luis Gnecco, Néstor Cantillana, Nicolás Saavedra, Paola Lattus, Roberto Farías, Sergio Hernández, Trinidad González
Roteiro: Gonzalo Maza, Sebastián Lelio
Produção: Gonzalo Maza, Juan de Dios Larraín, Pablo Larraín, Sebastián Lelio
Fotografia: Benjamín Echazarreta
Trilha Sonora: Matthew Herbert
Montagem: Soledad Salfate
Estreia: 06/04/17                 Estreia Brasil: 07/09/17
Duração: 104 min.


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