Visages Villages
Encantamento e
Finitude
O método ou a falta de método adotado por Agnès Varda e JR em Visages Villages (França, 2017) em muito lembra o modus operandi de Eduardo Coutinho, na medida em que aqueles dois primeiros decidem
fazer um documentário sem uma temática predeterminada, impulsionados tão
somente pela vontade de conhecer pessoas e pela arte de Jr que faz retratos
impressos em tamanho gigante para fins de colagem em espaços ao ar livre. Dito
isso, os dois artistas saem em viagem pelo interior da França em busca de
rostos para fotografar histórias para apresentar. Simples assim.
Contudo - como alguns trabalhos de Coutinho bem demonstram¹ - a referida
simplicidade pode se revelar algo deveras complexo caso não sejam encontrados
pela equipe de produção relatos bons o bastante para serem incluídos no filme,
perigo que a dupla central de Visages Villages tira de letra graças ao seu carisma -
capaz de baixar a guarda de qualquer indivíduo que, por
conseguinte, não tarda a ser convencido e a se animar com a ideia de ter sua
imagem captada e em seguida exposta em proporção predial - bem como pelas peculiares
intercessões de Varda que não se esquiva de manifestar seus pensamentos, o que transforma
as abordagens em conversas que, dado o grau de subjetividade envolvido, não se
confundem com meras entrevistas ou capturas de relatos, sendo emblemática,
nesse sentido, a passagem em que a cineasta corrige a esposa de um estivador
quando essa afirma que o apoia de maneira incessante, estando, por isso, sempre
atrás dele, no que é imediatamente repreendida por Agnès que docemente a questiona se não seria melhor dizer que está
cotidianamente ao lado do marido.
E é em meio a bate-papos dessa espécie que JR e Varda também vão
indicando para seus conterrâneos o valor da arte e o encantamento que ela consegue
causar, mesmo que porventura não consiga o receptor compreendê-la por completo
e ainda que ocorra de ser finita como é a vida e como são, em particular, as realizações
de JR (Jean Réné) de durabilidade comprometida
por fenômenos da natureza; neste passo, chama atenção o quanto é irrelevante
para Varda, JR e seus colaboradores a quantidade de tempo que durarão as
colagens por eles feitas - vide o caso da intervenção em uma rocha localizada à
beira mar e que não resiste à primeira maré alta enfrentada. Para aqueles o que
importa é o prazer da realização, isto é, fazer e, em seguida, ver diante de
seus olhos o resultado, experiência essa bastante significativa, sobretudo,
para Varda face a doença degenerativa que acomete sua visão.
A iminência de no futuro Varda não mais poder enxergar se confunde com o diminuto
número de anos que lhe resta, aproximação do fim encarada com destemor pela
cineasta que esbanja vitalidade para desfrutar das coisas que lhe apetecem e bom
humor para contornar as restrições impostas pela idade, daí sua empolgação e
entrega ao projeto implementado ao lado de JR, trabalho que se converte,
ressalte-se, em um dos mais belos encontros de gerações já vistos no cinema
dado o respeito mútuo existente entre os dois que reconhecem os limites um do
outro sem que, felizmente, isso os faça pisar em ovos. JR, por exemplo, não
hesita em tirar sarro ou discordar de Agnès durante deliciosas resenhas travadas
após o encerramento de cada processo de colagem, circunstância primordial
para a amigável interação da dupla e para a manutenção do agradável clima que
permeia todo o filme.
O determinismo de Varda em gozar aquilo que o presente lhe proporciona não
significa dizer que a mesma se recusa a visitar o passado. Dentro deste
contexto, por vezes a nostalgia naturalmente bate à sua porta e é por ela bem
recebida, o que, no bojo da estrutura fílmica, culmina na decisão por aquela
tomada de rever após um longo período o amigo Jean-Luc Godard a quem deseja
apresentar JR que, por seu turno, resulta nitidamente nervoso com tal perspectiva.
Cereja do bolo, o desenrolar de tal plano assume um papel superlativo que, já
próximo ao término, faz o longa-metragem atingir um patamar de qualidade ainda
maior seja pelo modo com que embaralha os sentimentos, em especial os de
Varda, seja pela forma como motiva a discussão sobre o documentário ser fruto preponderantemente
do acaso ou de um rol de estratégias narrativas previamente pensadas, sendo, por
isso, um desfecho que dialoga satisfatoriamente tanto com o grande público
quanto com a fração acadêmica da plateia.
Aliás, há quem implique com a obra sob a alegação de que a mesma aparenta
ser espontânea, embora, não o seja de fato. É bem verdade que nada afasta a possibilidade
de tal opinião ser procedente, afinal, segundo escreve Daniel Feix: “o real jamais será mostrado, absoluto, na
tela. Tudo é representação, mesmo nos documentários que almejam a pureza”².
Seja como for, uma conclusão é inegável: a experiência de assistir Visages Villages será, por certo, tão mais cativante quanto maior for o desprendimento, a
liberdade de se deixar envolver por esse maravilhoso espécime de mentira contada
em 24 quadros por segundo³.
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1. Vide os exemplos de O Fim e o Princípio
(Brasil, 2005) e Edifício Master
(Brasil, 2002) que, por sua vez, ensejou o lançamento de Coutinho.doc - Apartamento 608
(Brasil, 2009), documentário que funciona como uma espécie de making of ao passo em que discorre sobre
as dificuldades encontradas por Eduardo Coutinho para encontrar matéria-prima,
leia-se, gente com depoimentos suficientemente bons para um filme.
2. O Pós-documentário in SILVA,
Paulo Henrique (org.). Documentário
Brasileiro: 100 Filmes Essenciais. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 334.
3. Conceito criado por Rainer
Werner Fassbinder em contraponto a definição de Jean-Luc Godard para quem o
cinema equivale à verdade em 24
quadros por segundo.
Ficha Técnica
Direção
e Roteiro: Agnes Varda, Jr
Produção:
Rosalie Varda
Fotografia:
Claire Duguet, Julia Fabry, Nicolas Guicheteau, Raphaël Minnesota, Roberto De
Angelis, Romain Le Bonniec, Valentin Vignet
Trilha
Sonora: Matthieu Chedid
Montagem:
Agnes Varda, Maxime Pozzi-Garcia
Duração: 89 min.
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