Cidade de Deus: 10 Anos Depois
Questões Aprofundadas
Existe um falatório antigo sobre,
uma vez findas as filmagens, até onde vai a responsabilidade social do cineasta
quanto as pessoas não profissionais por aquele levadas para as telas, seja em
projetos ficcionais seja em obras documentais.
Neste sentido, no campo do
cinema de ficção são emblemáticas as críticas, indevidas, feitas a Hector
Babenco em decorrência da miserável e violenta morte que Fernando Ramos da
Silva sofrera mesmo após ter anos antes gozado de fama enquanto protagonista de
Pixote – A Lei do Mais Fraco (1980)¹,
ao passo que no âmbito do cinema documental, por exemplo, chama atenção uma
sequência de Lixo Extraordinário
(2010)
na qual o artista plástico Vik Muniz discute com parceiros se será uma experiência
positiva ou negativa levar ao exterior os catadores de lixo de Jardim Gramacho
(RJ) a fim de que participem de exposições de obras que ajudaram a compor – a
preocupação nesse caso se deve a consciência de que o momento de glamour gozado
por aquelas pessoas será efêmero já que os compromissos decorrentes do filme não
tardarão a cessar e muitas daquelas pessoas voltarão à rotina de outrora, o que
poderá lhes causar a angústia de ter sentido o gosto de uma vida melhor por apenas
uns breves instantes.
Cidade de Deus: 10 Anos Depois (Brasil,
2013) se aprofunda em tais questões ao investigar o que uma década mais tarde ocorrera
ao elenco não profissional do sucesso de público e de crítica de Fernando
Meirelles co-dirigido por Kátia Lund, contexto esse em que pelo menos 50% das
figuras abordadas confessa não ter conseguido prosperar enquanto artista
profissional daí porque acabaram se voltando para tarefas ordinárias de baixa
remuneração ou até para atividades ilícitas, viés esse em que, por maior que
seja o intuito do filme por soar imparcial, resta perceptível no ar um quê de
julgamento desfavorável a Meirelles, afinal:
·
São numerosos os minutos preenchidos com reclamações
de pessoas que na fase de pré-produção de Cidade
de Deus (2002) receberam a
proposta de, em troca do trabalho de atuação, receber cachês que variavam entre
dois e dez mil reais, a depender do papel interpretado, ou cotas de
participação nas bilheterias, assunto esse cujo tom de indignação daqueles que
lamentam por ter escolhido valores fixos e baixos se comparados ao faturamento
do título mundo afora não se justifica, uma vez que tratos dessa espécie são
comuns na indústria cinematográfica e que nenhuma certeza de êxito de uma
empreitada fílmica tão ambiciosa existia para a equipe de produção à qual, desta
feita, não cabe a acusação de ter agido com má-fé.
·
As conquistas individuais de alguns
participantes do longa-metragem de Meirelles e Lund são em Cidade de Deus: 10 Anos Depois tratadas como indignas de celebração
eis que, pelo visto, qualquer festejo dessa espécie pode soar como uma afronta
àqueles que não obtiveram semelhante resultado. Tal comportamento denota um utópico
desejo de vitória irrestrita para o cast,
anseio que esbarra no mundo real permeado por fatores múltiplos que tornam as
oportunidades desiguais e a vida doce para uns e amarga para outros como,
aliás, reconhece Seu Jorge a quem é reservada a grande cilada do documentário:
em um quarto de hotel o bem-sucedido músico e ator recebe a visita do camareiro
daquele espaço, homem esse que dez anos antes, quando ainda era uma criança,
participara de uma das cenas mais impactantes de Cidade de Deus – neste diapasão, a diferença de status entre os dois é salientada de tal
forma que nítido é o desconforto de Seu Jorge ante o paralelo criado entre sua
gloriosa carreira e o ostracismo enfrentado por aquele rapaz que sonha em um
dia voltar a atuar.
A bem da verdade, não
é apenas o triunfo de alguns atores que é olhado de forma atravessada, mas
também, e sobretudo, o deslanchar da trajetória cinematográfica de Meirelles
que chega a ser pintado como um aproveitador, ao invés de ter exaltado seu
talento enquanto elemento capaz de impulsionar carreiras e de fazer o cinema
nacional ser redescoberto mundialmente. Isto posto, o documentário seria ainda
melhor caso contasse com o depoimento do cineasta sobre as expectativas nele
depositadas quanto ao day after do
elenco, no que se inclui como compreende o choque cultural experimentado por
aquelas pessoas que um dia filmavam na favela e no outro eram tratadas como
estrelas em Cannes.
Talvez Meirelles não
tenha desejado correr o risco de passar por arapuca parecida àquela em que
caíra Seu Jorge, o que em sendo o caso parece ser uma decisão correta já que o diretor
há de falar por meio de seus filmes sem ter de ficar se justificando e/ou
desculpando para acalmar os ânimos de bradadores que imputam sobre alguns indivíduos
responsabilidades que lhe são alheias e que, por certo, deveriam ser cobradas
do Estado.
Apesar
da ausência de Meirelles acarretar uma inquestionável incompletude a Cidade de Deus: 10 Anos Depois, ainda
assim o resultado final do mesmo não deixa de ser fascinante na medida em que
homenageia aqueles para quem as luzes da ribalta não mais se acenderam, aproveitando,
ainda, para investigar como pensam e o que leva alguns a cobrar do cineasta um exercício
constante de gratidão em virtude de um trabalho de atuação prestado por prazo
determinado e de forma remunerada.
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1. Sobre o assunto a viúva de Fernando Ramos, Cida Venâncio, desmente “boatos de que Hector Babenco [...] teria abandonado Fernando após o filme e o restante da família quando o ator foi assassinado. ‘Mentira. Hector Babenco foi um pai para a família. Ajudava em tudo. Sempre presente. Nunca deixou faltar nada. Inclusive, pagou todos os estudos da Jaqueline [filha do casal]. Ainda ajudou minha outra filha a se formar dentista’, completa”. DIAS, Paulo Eduardo. Trinta anos depois, família de Pixote continua a ser exterminada. Disponível em https://ponte.org/trinta-anos-depois-familia-de-pixote-continua-a-ser-exterminada/. Acesso em 09/07/18.
FICHA TÉCNICA
Direção: Cavi Borges, Luciano
Vidigal
Roteiro: André Sampaio, Cavi
Borges, Luciano Vidigal
Produção: Carla Osório,
Daniel Barbosa
Fotografia: Arthur Sherman,
Vinícius Brum
Trilha Sonora: Gabriel Muzak
Montagem: André Sampaio
Estreia: 05/11/2015
Duração: 70 min.
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