Lixo Extraordinário
Interpretações
em Leque
O produtor
e diretor Zelito Viana em seu artigo Nosso Espelho tece a seguinte
opinião:
“insistimos em
querer combater a desigualdade social encarando o problema como econômico,
social ou político. Acontece que nós somos desiguais por um problema de
natureza cultural. A desigualdade é, nada mais nada menos, fruto de uma herança
comportamental, de natureza cultural, que recebemos de nossos avós e tetravôs
(...).
Enquanto ficarmos
discutindo economia, superávit primário, balança comercial, dívida externa e/ou
esbravejando ‘tudo pelo social’ (...) não conseguiremos mudar um milímetro da
nossa tremenda desigualdade social (...).
De que adiante a
educação formal e informativa sem cultura? Só o desenvolvimento cultural da
imensa maioria da população pode nos tirar deste abismo.
(...) a cultura tem
se constituído na única ferramenta capaz de ganhar o inconsciente dos jovens da
periferia das grandes cidades, afastá-los do tráfico (...). É com o Teatro, a
Dança, o Vídeo (...) que podemos devolver a auto-estima aos nossos jovens (...)
Quem sabe, nos
próximos trinta anos a cultura esteja efetivam,ente na
pauta da
preocupação de todos nós?”¹.
Corroborando
a tese de Viana, o artista plástico Vik Muniz realizou ao longo de quase três
anos uma experiência na qual confeccionou obras a partir de matérias-primas
extraídas do aterro sanitário de Jardim Gramacho (RJ) por catadores
profissionais de lixo, aspecto esse no qual residiu o principal objetivo de
Vik: utilizar tais pessoas como elementos de retratação e de intervenção no
trabalho artístico, para, assim, mostrar-lhes uma realidade diversa da pobreza
do dia-a-dia.
Considerando
que Lixo Extraordinário (Reino Unido; Brasil/2010) não se funda
em eventos preexistentes, o que se vê é o desenrolar de um projeto que não raro
transita com o risco de fracasso financeiro e/ou ideológico, viés esse no qual,
vale frisar, reside o momento mais marcante do documentário: entusiasmados com
o novo mundo para eles descortinado, os catadores revelam a angústia sentida ao
perceberem que não só o término das gravações se aproxima como também o dia em
que terão de retornar para a rotina de outrora. Preocupado, Vik discute com
seus colaboradores sobre até que ponto as boas intenções poderiam, perante
seres tão vilipendiados pelo Estado, resultar num choque cultural de natureza
irremediavelmente prejudicial².
Neste
diapasão, os intertítulos finais de Lixo Extraordinário demonstram que,
mesmo tendo sido inevitável a interrupção da convivência entre a equipe de
produção e os catadores, as vidas destes últimos quando não foram atingidas por
certo grau de melhoria financeira foram, pelo menos, presenteadas com um novo
sentido, passando tais pessoas a se enxergar com mais valor, dignidade e
orgulho.
Não
obstante o louvável altruísmo de Vik Muniz, algumas questões, vale dizer, se
mostram inafastáveis quanto a análise de seu ato e do registro cinematográfico
feito. Assim:
- Muito embora seja
esta uma produção internacional, haveria necessidade dos diálogos entre o
artista e seus colaboradores, também brasileiros, serem travados em inglês?
Afinal, por mais que o longa-metragem tenha como pano de fundo temáticas
universais - quais sejam o combate a pobreza e o incentivo a reciclagem - sua
abordagem não está entrelaçada ao prisma de uma realidade nacional?
- O registro cinematográfico do projeto seria um meio
de difusão e de estímulo a solidariedade ou, por outro lado, traria em si
indícios de autopromoção de Vik Muniz?
- A antropologia
partilhada³ do experimento resta maculada pelo viés por vezes maniqueísta do
filme?
- A cultura se
posta acima de aspectos sociais políticos e/ou financeiros constitui elemento
suficiente de transformação de realidades?
Todas essas
são perguntas marcadas pela interdisciplinaridade, daí suas respostas não se
esgotarem numa única análise, o que faz de Lixo Extraordinário um trabalho
digno do escrutínio de profissionais da sétima arte, das ciências sociais e da
psicologia. Goste-se ou não, são poucas as obras capazes de dialogar com uma
soma tão vasta de assuntos.
__________________
1. Contente em Ler – Cineastas – Crônicas,
Contos e Recordações. Brasília: Usina de Letras, 2010. p. 129-33.
2. Dentro da história do cinema brasileiro tal
discussão fora propagada quando do assassinato de Fernando Ramos da Silva, ator
que mesmo após interpretar o papel principal do filme Pixote (Brasil,
1980) voltou para as ruas e teve um trágico fim.
3. Método pelo qual o objeto de estudo é
manipulado, desenvolvido tanto por quem pesquisa quanto por quem é pesquisado.
Ficha Técnica
Título Original: Waste Land
Direção: Lucy Walker, João Jardim, Karen Harley
Fotografia: Duda Miranda
Edição: Pedro Kos
Estreia: 21.01. 2011 (Brasil)
Duração: 94 min.
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