Zama
Lentidão Apropriada
Há filmes que não possuem a intenção de servir como peça de
entretenimento, optando, ao contrário, por um papel experimental não raro mais
preocupado com a técnica empregada do que com a narrativa. Jean-Luc Godard é um
entusiasta de tal prática, sendo Film Socialisme (França/Suíça
2010), dentro deste contexto, um exemplo de obra que ao
deixar de atribuir legendas na integralidade para as narrações e diálogos
falados em francês e alemão, se debruça sobre uma teoria do som em especial qual seja o poliglotismo, assim explicado por Michel Chion:
“A
fala-emanação é o caso em que a fala não é obrigatoriamente ouvida e
compreendida na íntegra, e sobretudo em que não está ligada ao centro daquilo
que se poderia chamar a ação no sentido lato. Este efeito de fala-emanação pode
ser associado, por um lado, ao facto de o diálogo das personagens não ser
totalmente inteligível e, por outro, à forma como o realizador dirige os atores
e utiliza o enquadramento e a planificação, evitando sublinhar as articulações
do texto [...] contrariamente à regra aplicada em quase todos os filmes.
[...]
Esta fala-emanação, embora seja a mais cinematográfica, é a mais rara, e, por
razões complexas, o cinema sonoro utilizou-a muito pouco.
[...]
No entanto podemos evocar algumas tentativas esparsas de relativização da fala,
nomeadamente nos princípios do cinema sonoro.
[...]
– Poliglotismo ou utilização de uma língua estrangeira: alguns filmes, forçosamente
islodados, tentaram relativizar a fala utilizando uma língua estrangeira, não
compreendida pela maioria dos seus espectadores, ou misturando vários idiomas,
o que equivale a relativizar as línguas entre si”.
Outra vertente que se opõe ao cinema de ficção tradicional – cuja
padronização atual segue a cartilha da ultravelocidade impulsionada por planos
curtos e cortes em profusão – é aquela que a partir dos anos 2000 se
convencionou chamar de slow cinema,
estética que, a bem da verdade, já existe desde o pós-guerra vide as obras de
cunho existencialista realizadas entre as décadas de 1950 e 1960 por
Michelangelo Antonioni, Yasujiro Ozu, Alain Resnais, dentre outros, além
das produções de cunho contemplativo lançadas nos anos 1980 e 1990 por cineastas
como Theo Angelopoulos e Abbas Kiarostami. No presente momento, tão marcado por
um bombardeio de informações e imagens difundidas em tempo real pela internet,
a pressa por acumular dados parece ser a tônica de uma sociedade que, assim, se esmera mais em aglutinar do que em
desfrutar experiências, daí os títulos baseados na dinâmica do slow cinema surgidos a partir do século
XXI terem uma relevância própria, na medida em que se comportam como
ferramentas de resistência contra uma indústria que cada vez mais se vale do
corte como mero instrumento de imersão alienante, despreocupada, portanto, com
qualquer intuito de promover a ressignificação da imagem tal como costumava
fazer Sergei Eisenstein com esteio nas lições de Lev Kuleshov.
Em oposição, portanto, a banalização do corte o slow cinema, segundo ensina Camila Vieira, é constituído por:
“filmes que
investem no prolongamento da duração, na experiência da contemplação, na
manutenção da espera, na permanência do olhar. Seria menos a exploração do
longo take, mas sobretudo uma reelaboração da mise-en-scène a favor dos
pequenos acontecimentos [com] ênfase nos silêncios, na quietude, na contenção
do plano”².
Dito isso,
há trabalhos que conseguem fazer da lentidão um recurso apropriado à trama, ao
passo em que tiram proveito até de tempos aparentemente mortos que, desta
feita, funcionam como ilustrações da estagnação, agonia, solidão, tédio,
desesperança e/ou dilapidação psicológica dos personagens, seara essa em que
chama atenção de forma positiva as contribuições prestadas por Hong Sang-soo (Na Praia À Noite Sozinha) e Albert Serra (A Morte de Luís
XIV). Por seu turno, há também o
time dos mais radicais que, de forma torturante para o espectador, busca quebrar
barreiras e estreitar a relação do cinema com as artes plásticas visando, como escreve
Alan Campos: “Um
momento entre pintura e cinema, entre estabilidade e movimento”³. O mesmo articulista ressalta que, enquanto expoente desse grupo, Tsai
Ming-liang (Cães Errantes) compõe
obras interessadas no “registro de
uma ação com a menor quantidade de artifícios possíveis” ⁴, economia que costuma provocar
monotonia, restringindo a admiração por realizações dessa espécie a um nicho
diminuto, realidade na qual também se enquadram os filmes de Apichatpong
Weerasethakul (Cemitério
do Esplendor; Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas).
Via de
regra, o slow cinema pauta seus
enredos em torno de microacontecimentos, dando ênfase àquilo que é rotineiro,
cotidiano, características que Lucrecia Martel se apropria em Zama (Argentina/Brasil/Espanha/EUA/França/Holanda/Portugal/México,
2017) para, desse modo, moldar um exemplo – felizmente não radical – de adoção
harmoniosa da estética em comento para com o roteiro que, ao invés de desprezado,
segue prestigiado, isso porque a lentidão é vital para fins de demonstração do
enfado do protagonista que deslocado para uma colônia na América do Sul vê os
dias se arrastarem e a promessa de transferência para um lugar melhor se
configurar em falácia. Conforme bem observa Rodrigo Torres:
“o
protagonista vive uma típica situação kafkiana, confinado em uma máquina
burocrática que promete promovê-lo e demovê-lo daquela terra selvagem para a
capital argentina Buenos Aires. [...] Dom Diego é, assim, um homem encerrado no
sistema de que ele mesmo faz parte. Um colonizador sofrendo os terríveis
efeitos da colônia — onde, curiosamente, os colonizados se mostram livres
(literalmente), enquanto ele, não”⁵.
Destarte, é pela
morosidade das instituições e, por conseguinte, do passar do tempo que a
técnica do slow cinema firmada por
meio de planos longos, escassez de trilha sonora não diegética e montagem
desprovida de artifícios mirabolantes se mostra tão adequada às necessidades do
enredo. Nesta toada, Martel aproveita os tempos aparentemente inúteis para
neles inserir, seja com observações de entrelinha, seja com notas vistas na
profundidade de campo, apontamentos sobre o convívio entre colonizadores e
colonizados, bem como sobre a carência de valores que permeara tal ocupação e
que muito denota o quão os problemas de hoje tem por raiz as práticas perpetradas
séculos antes.
Com efeito,
o processo de análise dessa realidade vivida em meio a um calor extenuante e
precárias condições de higiene permitem uma ambientação do público por aquela
época. Dessa maneira, Martel faz com que seu exemplar de slow cinema “nos coloque a
vagar pelo plano em um contato mais próximo e corporal com aquelas imagens,
como se estivéssemos lá, experimentando o tempo ao lado dos personagens”⁶,
resultado esse que cobra um preço considerável, qual seja o de deixar a plateia
sem afinidade pelas figuras retratadas, panorama que, contudo, é
surpreendentemente sacudido pela entrada em cena de Matheus
Nachtergaele que enche a tela com uma performance acachapante porque capaz de
despertar sensações que vão da desconfiança ao asco, colaboração que atribui
nova feição ao longa-metragem que, a partir de então, abandona os eventos
ordinários, banais em prol de sequências de conteúdo extraordinário que acabam
ainda por denotar o quão desprovidos de definitividade são os conceitos criados
por críticos e pesquisadores para aquilo que batizaram de slow cinema.
______________________
1.L'audio-vision : son et image au
cinema. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2011. Tradução: Pedro Elói Duarte.
p. 138-41.
2. Introdução ao
Slow Cinema. Disponível em: http://multiplotcinema.com.br/2018/07/introducao-ao-slow-cinema/.
Acesso em 11.08.18.
3.Imagem Enquanto Gesto e Gesto Enquanto Potência. Disponível em: http://multiplotcinema.com.br/2018/07/imagem-enquanto-gesto-e-gesto-enquanto-potencia/.
Acesso em 11.08.18.
4. Op. Cit.
5. Versão
integral disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-214092/criticas-adorocinema/ Acesso em
11.08.18.
6. CAMPOS, Alan. Op. Cit.
Ficha Técnica
Direção e Roteiro: Lucrecia Martel
Produção: Benjamín Doménech,
Matias Roveda, Santiago Gallelli, Vania Catani
Elenco: Camila Sosa, Carlos
Defeo, Daniel Giménez Cacho, Daniel Veronese, Jorge Román, Juan Minujín, Lola
Dueñas, Mariana Nunes, Matheus Nachtergaele, Nahuel Cano, Rafael Spregelburd
Fotografia: Rui Poças
Montagem: Karen Harley,
Miguel Schverdfinger
Estreia: 29/03/2018
Duração: 115 min.
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