A Garota na Névoa
Sucessão de
Viradas
Ao discorrer sobre aquilo que chama
de filmes autoconscientes Arthur Tuoto pontua que as obras assim categorizadas tecem
comentários sobre si mesmas e sobre os gêneros cinematográficos aos quais se
filiam¹. Trocando em miúdos, tais produções escancaram propositalmente certas
possibilidades/fórmulas/clichês inerentes ao tipo de história contada deixando
no ar de forma velada ou superexposta reflexões sobre o fazer cinematográfico
que vão além da metalinguagem na medida em que o processo de incorporação das
análises mencionadas à realidade dramática torna essa última algo pouco confiável dado o uso de sucessivos pontos de virada¹ pelo roteiro que,
desta feita, desconstrói para logo adiante reerguer novas trilhas para a
narrativa.
Um
título que bem exemplifica o que acima fora dito é A Garota na Névoa (Itália/Alemanha/França, 2017), cujo enredo gira
em torno do desaparecimento/sequestro de uma adolescente e da investigação a
partir de então deflagrada, trama essa que é permeada pela possível utilização
de estratégias literárias pelo suposto raptor para fins de realização de um crime
à prova de erros. Ocorre que, como é comum aos trabalhos autoconscientes, não
basta alertar a plateia para os maneirismos rotineiramente vistos em livros e
filmes sendo também necessário transgredir, virar todas as certezas de cabeça
para baixo e mostrar que outros coelhos da cartola podem ser tirados em prol de
uma surpresa e êxtase final.
Dentro
deste contexto, a mente por trás dessa intricada teia de falsas aparências é Donato
Carrisi escritor policial italiano que realiza seu ambicioso debut no universo cinematográfico adaptando
e dirigindo um best seller seu, zona de segurança que, entretanto, não o afasta
de uma desmedida busca por plot twists, cacoete capaz de desagradar o espectador que já satisfeito com o jogo de
ambiguidade desenvolvido ao longo da trama é exagerada e novamente surpreendido
com a revelação que encerra o suspense, guinada que força um reencenação mental
dos fatos que duela com a verossimilhança³.
Não à
toa, A Garota na Névoa fica no meio do caminho entre um exitoso
caso de filme autoconsciente que busca dissecar e renovar o gênero ao qual se
vincula e um malsucedido exemplo de utilização em demasia de reviravoltas que
tornam o enredo pouco crível. Se, de uma banda, o script pode dividir opiniões, por outro lado os ótimos trabalhos de
fotografia, direção de arte e de elenco parecem imunes a reclamações ao passo
em que, tal como exigido pela história, proporcionam uma atmosfera sombria, por
vezes próxima a dos filmes de terror hollywoodianos – aliás, trabalhos como esse
e O Amor é um Crime Perfeito
(Suíça/França,
2013) mostram como o cinema comercial europeu tem cada vez mais se mesclado
com a essência do cinema de gênero produzido nos EUA, circunstância que, apesar
da inegável possibilidade de limitar as possibilidades criativas caso em mãos
erradas, não necessariamente há de ser vista como um problema tendo em vista se
tratar de uma soma e não de uma subtração.
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1. Comentários presentes no vídeo “O que é um filme
autoconsciente?” disponível em https://www.youtube.com/watch?v=w7dw_YMpibI.
Acesso em 02/09/18.
2.
De acordo com a lição de Syd Field, o ponto
de virada é representado por “algum
evento, incidente ou episódio que dê uma guinada na história e, ao mesmo tempo,
mude o seu curso” (Roteiro: os
fundamentos do roteirismo. Curitiba: Arte & Letra, 2009. p. 94).
3. Neste sentido, Leonardo Ribeiro escreve: “A Garota na Névoa exige um nível razoável de suspensão de
descrença para que se aceite a complexidade calcada em muitos acasos por trás
de sua grande revelação” (disponível em https://www.papodecinema.com.br/filmes/a-garota-na-nevoa/.
Acesso em 02/09/18).
Ficha Técnica
Título Original: La Ragazza Nella Nebbia
Direção e Roteiro: Donato Carrisi
Produção: Maurizio
Totti, Alessandro Usai
Elenco:
Toni Servillo, Jean Reno, Alessio Boni, Lorenzo Richelmy, Galatea Ranzi,
Michela Cescon, Ekaterina Buscemi
Fotografia: Federico
Masiero
Direção
Musical: Vito Lo Re
Montagem:
Massimo Quaglia
Figurino:
Patrizia Chericoni
Duração:
127 min.
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