Ferrugem / Yonlu



Separados Pela Objetividade


Curiosamente o trailer de Ferrugem (Brasil, 2018) passa a falsa impressão de que o filme será concentrado integralmente na figura de Tati (Tifanny Dopke), estudante que vítima do vazamento de um vídeo íntimo na internet não suporta a vergonha e acaba ceifando a própria vida dentro do colégio onde passara a sofrer uma rotina de bullying¹ por parte do corpo discente ao qual pertence o autor do compartilhamento indevido da imagem daquela. Neste sentido, ao espectador cabe a surpresa de ver a protagonista saindo de cena ainda na primeira metade do longa-metragem – influência de Hitchcock e seu Psicose (?) – e a trama aparentemente ser encerrada de modo precoce. Eis que, então, um segundo ato ocultado pela campanha de marketing se revela e instaura uma inversão de óticas, já que se antes o ponto de vista acompanhado era o da adolescente exposta, adiante a atenção estará voltada para a aflição e o sentimento (presente ou ausente) de culpa dos responsáveis pela divulgação da gravação que contém cenas da garota em pleno ato sexual. Essa segunda parte do longa-metragem pode de imediato soar inferior à narrativa em tom de denúncia que permeia a hora inicial da produção, sensação que felizmente logo muda quando um tempero extra é adicionado ao enredo: a conivência do pai do rapaz envolvido na exploração das imagens alheias, homem adulto esse que, embora atue como professor na mesma escola que servira de palco ao suicídio de Tati, tenta a todo custo acobertar o rebento e garantir sua impunidade. Mediante essa outra reprovável conduta a obra provoca ainda mais indignação na plateia, não deixando brecha para qualquer pensamento de condescendência ou de relativização da gravidade de um ato de abuso que, como fica claro, jamais poderá ser justificado com esteio numa suposta anuência da vítima – cabe lembrar que para muitos permanece vigorando a errônea compreensão de que a mulher ao se deixar fotografar ou gravar nua assume o risco de ser exposta não podendo, por isso, se queixar quando o pior acontece. Com efeito, Ferrugem analisa a incapacidade de certas famílias acompanharem o cotidiano e até mesmo a formação de caráter de suas crias em tempos de hiperconectividade e o jeito nem sempre razoável e por vezes destrutivo com que jovens se utilizam das tecnologias de comunicação. De maneira objetiva a obra atinge o cerne da ferida e consegue fazer aquilo que lhe era predestinado: incomodar e alertar.
Já em Yonlu (Brasil, 2017), outro título que também lida com o delicado assunto do suicídio entre menores, essa percepção de que a formulação de uma denúncia há preferencialmente de ser chocante e objetiva não se faz presente com a mesma intensidade, o que diminui o impacto do retrato fílmico feito para a história real de Vinicius Gageiro Marques, adolescente de 16 anos de idade que não mais conseguindo lidar com o estado de depressão que sobre ele se instaurara atentou contra sua vida valendo-se na ocasião da “ajuda” de fóruns virtuais nos quais participantes estimulam uns aos outros a se matarem e ensinam técnicas eficientes pra tanto. Neste passo, o diretor Hique Montanari se debruça sobre a faceta artística do personagem principal e utiliza seus desenhos, redações, pinturas e canções para criar uma atmosfera onírica em que a preocupação sensorial se sobrepõe ao intuito de discutir a fundo a parcela de responsabilidade daqueles que colaboraram para que alguém se suicidasse. Ocorre que ao privilegiar os meandros da mente de Vinicius e suas criações musicais, plásticas e textuais o filme esbarra em suas próprias limitações orçamentárias, o que faz sequências repletas de boas intenções soarem um tanto amadoras desviando, assim, a atenção do público para essas imperfeições e pondo, por conseguinte, num plano abaixo a discussão em torno do que representam os chats de reunião para potenciais suicidas.

Enquanto Ferrugem tem um roteiro formalmente estruturado para salientar em letras garrafais o quão desastrosa e traumática é a experiência de alguém que após ter seu nome e imagem chafurdados na lama pelo machismo (em momento algum o parceiro de Tati é alvo dos julgamentos a ela endereçados) não vê outra alternativa além da interrupção de sua existência, Yonlu se atrapalha em sua dupla tarefa de mostrar o cinebiografado como um ser humano cativante, prolífico e talentoso e de tecer uma crítica contra a irresponsabilidade de quem se dispõe a aconselhar alguém sobre como morrer. Como resultado, os dotes do jovem seguem elevados ao passo que o discurso questionador acerca dos perigos que a internet também proporciona, lamentavelmente, fica restrito a superfície, o que denota a desarmonia do tratamento dado às duas frentes narrativas citadas, bem como a ineficiência da toada teatral utilizada nesse contexto. Em resumo, a extensão do aprofundamento das problemáticas vistas nos casos em análise alcança maior ou menor escala conforme o grau de objetividade dos roteiros e suas respectivas capacidades de evitar o tangenciamento da matéria.
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1.    Neste diapasão, Juliana Varella observa: “De repente, para Tati, o mundo que ela amava se tornou um lugar hostil. Na aula, aqueles que eram seus amigos fazem piadinhas com ela. Nos corredores, pessoas desconhecidas riem e lançam olhares maldosos. Até o segurança da escola parece ter visto as imagens e, pior, gostado delas. É como se o fato de um dia ter se exposto (mesmo que para um namorado) desse a qualquer outro homem o direito de tirar um pedaço dela. De uma hora para a outra, é como se ela não fosse mais uma pessoa. É como se ela fosse uma fantasia sexual. Uma piada. Um meme. Um nada” (Disponível em https://www.cineclick.com.br/criticas/ferrugem. Acesso em 21/12/2018).

Ficha Técnica - Ferrugem

Direção: Aly Muritiba
Roteiro: Aly Muritiba, George Moura, Jessica Candal
Produção: Ana Catarina, Antonio Júnior, Fernando Meirelles, Guel Arraes
Elenco: Clarissa Kiste, Dudah Azevedo, Enrique Diaz, Giovanni de Lorenzi, Igor Augustho, Pedro Inoue, Tifanny Dopke
Fotografia: Rui Poças
Trilha Sonora: Fabian Oliver
Montagem: João Menna Barreto
Estreia: 30/08/2018 (Brasil)
Duração: 100 min.

Ficha Técnica - Yonlu

Direção e Roteiro: Hique Montanari
Produção: Taty Behar
Elenco: Anderson Salles, Áquila Mattos, Douglas Florence, Frederico Restori, Leonardo Machado, Liane Venturella, Lorena Lorenzo, Mirna Spritzer, Nelson Diniz, Rodrigo Waschburger, Thalles Cabral, Victória Sanguiné
Fotografia: Juarez Pavelak
Trilha Sonora: Nando Barth
Montagem: Alfredo Barros
Estreia: 30/08/2018 (Brasil)
Duração: 90 min.

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