Coringa


Misantropia e Niilismo
Em entrevista promocional para o lançamento de Coringa (EUA, 2019) o diretor Todd Phillips afirmou:

“Um dia eu estava relembrando alguns filmes dos anos 70 e 80 que vi na juventude e adorava, como Serpico, Taxi Driver, Um Estranho no Ninho, O rei da Comédia. Daí pensei: como seria se produções como essas fossem feitas hoje, quem iria assistir? [...] E se eu pegasse um personagem de algo que está na moda, como os filmes de super-heróis?”¹ 
A declaração do cineasta é constatada na prática através da estratégia de trabalho por ele implementada em Coringa, obra que exala a mise-en-scène de Martin Scorsese vista em O Rei da Comédia (EUA, 1983) e, sobretudo, Taxi Driver (EUA, 1976). Aliás, o joker personificado por Joaquin Phoenix funciona como uma versão anos 2000 de Travis Bickle, o icônico motorista de taxi interpretado por Robert De Niro, afinal, tratam-se de personagens vilipendiados pela sociedade na qual estão inseridos e que acabam desenvolvendo uma misantropia que acarreta um questionável senso de justiça executado por meio de atos de delinquência. É claro que ambas as figuras apresentam distúrbios de ordem mental que se não chegam a torná-los incapazes os deixam, contudo, mais suscetíveis a arroubos de fúria perante o doentio mundo em que vivem. Uma diferença, entretanto, há entre os personagens: enquanto Bickle possui o intuito de resgatar uma adolescente obrigada a se prostituir, o que para alguns pode servir de justificativa para as atrocidades por ele cometidas, Arthur Fleck (alter ego do Coringa) não detém tal objetivo, daí que toda e qualquer barbaridade por ele perpetrada não visa salvar alguém, mas apenas expurgar o sofrimento experimentado em decorrência de tantos gestos de humilhação e de descaso aos quais fora submetido ao longo da vida. Embora não seja condescendente com os atos ilícitos realizados pelo protagonista, o roteiro de Phillips em conjunto com Scott Silver providencia uma longa contextualização narrativa que, desta feita, confere um arco dramático para o personagem capaz de despertar empatia para com seu sofrimento, o que, por outro lado,  não significa conformismo para com as explosões de violência do “comediante” uma vez inseguro que cede lugar para o criminoso niilista e determinado a instaurar o caos e a anarquia.
Apesar de Batman – O Cavaleiro das Trevas (EUA, 2008) contar com a premiada interpretação de Heath Ledger para o Coringa, seu papel não dispunha ali de uma história de origem, ao passo que tal meta fora direcionada para outro vilão, qual seja Harvey Dent, o homem por trás do Duas-Caras. A realização de Todd Phillips, por seu turno, preenche tal lacuna portando-se, como já comentado pelo artista, ao modo dos títulos policiais da década de 1970, daí não se misturar com os filmes de heróis tradicionais, o que não quer dizer que a produção rejeita o filão, mas apenas que o atualiza, vide as ousadias narrativas inseridas já citadas bem como as variações experimentadas em torno da mitologia do homem-morcego, o que inclui suspeitas felizmente não esclarecidas e somente deixadas no ar quanto ao motivo de haver tanto ódio do palhaço do crime por Bruce Wayne.

Dentro deste contexto, a despeito de ser um enredo baseado em quadrinhos da DC Comics, Coringa não demanda efeitos visuais de ponta, eis que não se trata de um típico filme de aventura e sim de um drama policialesco voltado principalmente para o público adulto. Com esteio em um trabalho de fotografia impecável na forma como usa desde a simetria até supercloses, as sequências de maior adrenalina são construídas não para entreter, mas para chocar, objetivo alcançado por meio também de exímios exercícios de decupagem e de montagem que associados criam tensão e entregam clímax de maneira exemplar.
Por fim, falar sobre o talento de Joaquin Phoenix é repetir o que tantos já fizeram, contudo, ainda assim cabe chamar atenção para o esforço não só psicológico quanto físico empregado pelo ator que inteligentemente se esquiva de responder quantos quilos teve de emagrecer para o papel como forma de não desviar o foco sobre o que realmente importa: o tour por ele proposto a uma mente perturbada que maltratada desde a infância conheceu apenas a rejeição e por isso compreende que a violência é a única reação cabível contra tudo que lhe fora imposto.
Destarte, é reducionista o comentário por muitos feito de que o filme propaga a cultura incel², afinal, o protagonista não é exclusivamente um heterossexual forçado ao celibato, sendo também uma pessoa cuja mãe jamais fora um exemplo de amparo e que, não fosse o bastante, fora rejeitado pelo suposto pai, além de ser um esquizofrênico depauperado e ignorado pelo Estado e um artista sem talento que acaba alvo de chacota entre seus “pares”. Coringa é, portanto, bem mais complexo, como bem sabem Todd Phillips e Joaquin Phoenix. Coringa não é apenas o maníaco das histórias em quadrinhos, é também o insano que vive entre nós, espécie de pessoa essa para a qual Scorsese e De Niro já chamavam a atenção em meados da década de 1970. That’s life!
_________
1.    Revista Preview. Ano 10. ed. 118. São Paulo: Sampa, Setembro de 2019.  p. 22).
2.    Nesta toada, mostra-se oportuna a fala de Joaquin Phoenix a saber: “o filme é sobre o poder da gentileza e sobre a falta de empatia no mundo, e o público parece ter percebido isso. Algo que deveria inspirar o caos em massa, como dizem, acabou inspirando pessoas a dançar nas escadas” (Joaquin Phoenix celebra o sucesso de Coringa: ‘É sobre o poder da gentileza’. Disponível em https://rollingstone.uol.com.br/noticia/joaquin-phoenix-celebra-o-sucesso-de-coringa-e-sobre-o-poder-da-gentileza/. Acesso em 20/11/19).

FICHA TÉCNICA

Título Original: Joker
Direção: Todd Phillips
Roteiro: Scott Silver, Todd Phillips
Produção: Bradley Cooper, Emma Tillinger Koskoff, Todd Phillips
Elenco: Bill Camp, Brett Cullen, Bryan Callen, David Iacono, Douglas Hodge, Frances Conroy, Glenn Fleshler, Isabella Ferreira, Joaquin Phoenix, Josh Pais, Mandela Bellamy, Marc Maron, Rich Petrillo, Robert De Niro, Shea Whigham, Zazie Beetz
Fotografia: Lawrence Sher
Trilha Sonora: Hildur Guðnadóttir
Montagem: Jeff Groth
Estreia: 03/10/2019
Duração: 122 min.

Comentários

LEIA TAMBÉM