Joias Brutas / Ouro e Cobiça

Ícaros
 Um dos modelos clássicos de roteiro, as histórias de Ícaro abordam a ascensão e queda de seus personagens principais. Como bem observa M. E. Torres:
“são narrativas de arrivismo social, de êxito vertiginoso, de vaidade triunfante e, em última instância, do castigo que merece todo aquele que, por ambição, estupidez ou falta de realismo, tenta voar muito alto. [...] Vistas assim, as histórias de Ícaro são uma indução à humildade e ao conformismo”¹.
Nesta toada, dois filmes obviamente muito próximos quanto a seus enredos servem de exemplo para tal sistematização: Ouro e Cobiça (EUA, 2016) e Joias Brutas (EUA, 2019), trabalhos que apresentam protagonistas obcecados por seus projetos de poder e pela busca por sucesso após tantos fracassos contabilizados.
Para tais seres mais do que a fortuna importa o respeito e o reconhecimento daqueles que não acreditam em suas visões nem lhes dão o crédito que julgam merecer por suas ideias mirabolantes, contexto esse em que a insistência com que perseguem seus objetivos é testemunhada de perto por mulheres que tanto podem ser a eles leais quanto, ao contrário, podem ser centradas em si mesmas e, assim, não dispostas a acompanhá-los em suas caminhadas rumo ao fundo do poço.
Destarte, em sendo o sucesso e o tropeço passagens inevitáveis em tais tramas, o que torna saborosa essa receita um tanto previsível são os ingredientes extras a ela acrescentados que em se tratando das obras em comento são os seguintes:
·       Em Ouro e Cobiça tem-se um primeiro ato transcorrido quase todo em locações inóspitas da Indonésia onde são feitas buscas pelo metal precioso e um segundo ato cuja ambientação é alterada para locais urbanos onde reuniões com empresários, investidores e acionistas tornam-se constantes. O fator comum e de ligação em tais atos é a presença do incansável protagonista que atravessa todo esse percurso quase sempre com um copo de bebida na mão, detalhe que Matthew McConaughey incorpora com maestria a uma atuação brilhante como costumeiramente tem-se visto desde o início dos anos 2010.
Neste sentido, é bem provável que outro ator com menor talento não conseguisse manter a atenção da plateia pelo longa-metragem já que é em torno do personagem principal que se concentram as nuances sobre ética, perseverança e caráter, sendo este, portanto, uma pessoa multifacetada e complexa enquanto os coadjuvantes seguem em suas camadas únicas, vide o exemplo da personagem feminina - defendida por Bryce Dallas Howard - que conformada com o comportamento de seu amado pouco acrescenta em meio a um enredo deveras masculino no qual ou a mulher é uma pobre vítima resignada que permanece a espera de seu homem ou de maneira inversa, como é o caso da algoz daquela primeira, é alguém inescrupulosa que não titubeia em usar o corpo para galgar os degraus almejados.
Somam-se a esse quadro de presenças unidimensionais os executivos que se aproximam do protagonista com notório propósito de dele se aproveitarem, circunstância que num mundo perfeito poderia ser tratada com maior sutileza para agregar ambiguidade a trama, elemento que até dá as caras na produção já na sequência final por intermédio de um plot twist construído apressadamente em torno do papel de Édgar Ramírez que aqui interpreta um geólogo sócio do personagem central.
Em síntese, trata-se de um filme de corrida pelo ouro com subidas e descidas de um protagonista vivificado com afinco e até certa facilidade por McConaughey que, desta feita, assume e cumpre a responsabilidade de não tornar este um título esquecível.
·      Joias Brutas, outrossim, apresenta o mesmíssimo tipo de pretensão por parte de seu protagonista que, embora atue como joalheiro, não se interessa em procurar ouro no interior da selva, preferindo, por seu turno, investir em pedras raras extraídas de solo africano, sendo este um meio que lhe garante condições de trabalhar naquilo que realmente o atrai: as apostas. Para tal figura o grande palpite da maior aposta de todas está prestes a se concretizar e a torná-lo um vencedor, a despeito da descrença de familiares, amigos e credores.
Além de novamente filmarem de modo menos convencional e mais frenético, tal qual haviam feito em Boa Companhia (2017), os diretores, irmãos Safdie, repetem a estratégia de investir em um ator desacreditado – naquele caso Robert Pattison e no caso em análise Adam Sandler – para dele arrancar uma performance ímpar. Para ser mais exato, o que se vê é um tour de force de Sandler que dá tudo de si para uma narrativa de ritmo incessante  que tem o nítido intuito de deixar o espectador extenuado tamanhas as idas e vindas no cotidiano do protagonista que ainda recebe o assessoramento de uma figura feminina de personalidade questionável - vivida pela estonteante  Julia Fox - cuja volátil noção de fidelidade torna mais interessante e tortuosa a trajetória do Ícaro de Sandler.
Como não poderia ser diferente, as derrocadas confirmam-se ao término em ambas as obras com as respectivas particularidades: se em Ouro e Cobiça é garantida uma espécie de redenção ao anti-herói em um final feliz politicamente incorreto e cínico, apesar de pouco digno de nota dada sua carência de plausibilidade, em Joias Brutas, por outro lado, a realidade atropela o protagonista de modo tão abrupto que a ele sequer é dada a oportunidade de gozar de seu triunfo ou de tentar novas negociações, momento chocante esse que deixa o filme, por certo, marcado na memória de quem o assiste - nem que seja pelo último sorriso deste Ícaro.
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1.     Hollywood há 100 anos conta as mesmas seis histórias, e você nem percebeu. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/03/cultura/1567518278_350381.html. Acesso em 15/06/2020.

FICHA TÉCNICA – JOIAS BRUTAS
Título Original: Uncut Gems
Direção: Benny Safdie, Josh Safdie
Roteiro: Benny Safdie, Josh Safdie, Ronald Bronstein
Produção: Catherine Farrell, Eli Bush, Irfaan Fredericks, Michael Bartol, Scott Rudin, Sebastian Bear-McClard
Elenco: Abel Tesfaye, Adam Sandler, Eric Bogosian, Idina Menzel, Jacob Dylan Igielski, Jonathan Aranbayev, Judd Hirsch, Julia Fox, Keith William Richards, Kevin Garnett, Lakeith Stanfield, Marshall Greenberg, Mike Francesa, Noa Fisher, Tommy Komini
Fotografia: Darius Khondji
Trilha Sonora: Daniel Lopatin
Montagem: Benny Safdie, Ronald Bronstein
Design de Produção: Sam Lisenco
Estreia: 31/01/2020
Duração: 135 min.

FICHA TÉCNICA – OURO E COBIÇA
Título Original: Gold
Direção: Stephen Gaghan
Roteiro: John Zinman, Patrick Massett
Produção: John Zinman, Matthew McConaughey, Patrick Massett
Elenco Bill Camp, Bruce Greenwood, Bryce Dallas Howard, Corey Stoll, Craig T. Nelson, Édgar Ramírez, Lora Martinez-Cunningham, Matthew McConaughey, Michael Landes, Rachael Taylor, Stacy Keach, Toby Kebbell
Fotografia: Robert Elswit
Trilha Sonora: Daniel Pemberton
Montagem: Douglas Crise, Rick Grayson
Duração: 121 min.

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