Melancolia
Ao
Gosto do Freguês
I – Parte Um: Justine
Na
autobiografia ‘Mutações’, a atriz Liv Ullmann assim escreve sobre seu
relacionamento com Ingmar Bergman na ilha de Fårö:
“Certa vez, nós nos afastamos dos outros e
descobrimos uma pequena crista de pedras cinzentas com terra árida, estéril, do
outro lado. Ficamos lá sentados, olhando o mar, pela primeira vez completamente
parado, ao sol.
(...)
No lugar onde nos sentávamos, ele construiu sua
casa.
E aquilo mudou a sua vida. E a minha.
Da próxima vez em que vi a ilha, era inverno. (...)
Nosso futuro lar estava sendo construído. Juntos, fomos vê-lo pela primeira vez.
(...)
Alguém trouxera champanha e eu quebrei a garrafa,
fizemos discursos e batizamos a casa.
Caminhamos pela praia, que só tinha pedras, e
tiramos fotos um do outro. Eu pareço feliz em todas elas, mas sei que estava
pensando: Isto é um sonho. Estou participando do sonho de outra pessoa.
E o que fora antes minha vida era irreal, estava
distante”¹.
“O medo de magoar, o medo da autoridade, a
necessidade de amor, colocaram-me em situações do maior desamparo. Suprimi meus
próprios e vontades e, sempre ansiosa para agradar, fiz o que se esperava de
mim”².
Em Melancolia (Dinamarca/Suécia/França/Alemanha,
2011) a personagem Justine - interpretada com brilhantismo por Kirsten Dunst -
tanto experimenta sensações semelhantes as de Ullman, quanto passa por situação
parecida com aquela acima transcrita – qual seja a cena em que a mulher é, na
festa de seu casamento, surpreendida pelo marido com a notícia de que este no
dia anterior comprara um pedaço de chão para o casal estabelecer sua morada.
Incapaz
de manifestar alegria pela revelação que lhe fora confiada, pela festa que seu
cunhado lhe proporcionara e pela promoção que seu patrão na mesma noite lhe
concedera, Justine agoniza perante as expectativas e deveres que lhe são
endereçados e acaba, desta feita, implementando a fuga aconselhada pela mãe e dada
como exemplo pelo pai.
II – Parte Dois: Claire
Considerando
que Melancolia se trata do filme
apocalíptico de Lars Von Trier, cabe ao segundo capítulo da obra a tarefa de
explorar o tema, o que é feito mediante a análise do comportamento de Claire,
seja socorrendo a depressiva irmã Justine, seja controlando seu próprio pavor
perante as pessimistas previsões envolvendo o fim do mundo.
III – Parte Três: Junção
Embora
apresente uma inconteste desarmonia entre capítulos compostos por tramas tão distintas,
Melancolia demonstra sim um elo condutor
entre as partes, qual seja o viés psicológico de relações humanas que beiram o colapso;
daí porque o aspecto catastrófico do extermínio da vida humana serve, na
verdade, como moldura e também como ponto de referência para a alteração de comportamentos
perante o fim iminente³-⁴.
Neste
diapasão, o desenvolvimento do roteiro pode parecer arrastado para aqueles que
se identificam com as toadas mais contundentes e radicais de outros filmes de
Trier como Dogville (2003) e Anticristo (2009), fração de público
essa que, entretanto, pode se deleitar com:
· a incrível beleza plástica do prelúdio – cuja semelhança
para com Anticristo, quanto a
técnica, salta aos olhos;
· a delicada composição da sequência final que, mesmo
de forma pessimista, denota um quê de redenção para os personagens;
· o exímio trabalho de fotografia que, mesmo limitado
a poucos cenários e locações, logra o êxito de causar um constante impacto
visual;
· a eficiente união de imagem e som, neste caso
representado por um vigoroso naipe de músicas clássicas;
· a
possibilidade de ver um elenco com estrelas do porte de Kirsten Dunst, Kiefer
Sutherland, Charlotte Rampling, Udo Kier, Stellan Skargård e John Hurt contracenando em cenário e contexto
que deixariam orgulhosos cineastas como Robert Altman e Ingmar Bergman;
· Charlotte Gainsbourg que, com a competência que lhe
é rotineira, interpreta um papel que remete ao de seu parceiro de cena em Anticristo, Willem Dafoe.
Dito isso, a escolha
sobre o que há de melhor no longa-metragem fica, por fim, ao gosto do freguês.
__________________
1. Mutações. 10ª ed.Rio de
Janeiro: Nórdica. p. 101-2.
2. Op.
Cit. p. 133.
3. Graças
a essa circunstância, os fracos se tornam fortes e vice-versa.
4. Não à toa Lars Von Trier revela desde o sensacional prólogo
o fim que sua história terá, o que afasta ainda mais sua obra de outras de igual
tema que, de maneira diversa, fazem suspense com a possibilidade de devastação
da Terra.
COTAÇÃO – ۞۞۞۞
Ficha Técnica
Título Original: Melancholia
Direção e Roteiro:Lars Von Trier
Produção:Louise Vesth, Meta
Louise Foldager
Elenco:John Hurt (Dexter)Alexander Skarsgård (Michael)Charlotte Gainsbourg (Claire)Stellan Skarsgård (Jack)Charlotte Rampling (Gaby)Cameron Spurr (Leo)Kiefer Sutherland (John)Jesper Christensen (Little Father)Brady Corbet (Tim)Udo Kier (Wedding planner)Kirsten Dunst (Justine)
Fotografia: Manuel Alberto
Claro
Direção de Arte: Simone Grau
Figurino: Manon Rasmussen
Edição: Molly Marlene
Stensgaard e Morten Hojbjerg
País de Origem: Dinamarca
Estreia no Brasil: 5 de Agosto de 2011
Estreia Mundial: 27 de Maio de 2011
Duração: 130 min.
Acho fantástico esta possibilidade de impressões que o cinema permite! O teu texto também é ótimo Dario! Valeu!!
ResponderExcluirO início de seu texto, com o belo, duro e profundo relato de Ullman é soberbo (melhor ainda pelo fato de eu conhecer o livro e tê-lo iniciado, sem, contudo, tê-lo concluido e desconhecendo assim a passagem citada =)
ResponderExcluirNo entanto, discordo da analogia aqui apontada entre Ullman e a personagem Justine;
em primeiro lugar não há nada que sugira de forma minimamente segura que Justine ame seu "futuro ex-fututo marido"; embora ela aparente felicidade (ou ao menos empolgação) no caminho p/ o casório, isto é muito pouco p/ se inferir amor, como o que Ullman parece ter sentido por Bergman; a traição absolutamente gratuita parece-me expressar bem isso.
em segundo lugar, Justine demonstra um descontentamento absoluto, tanto que mesmo após desistir do casamento nao se torna mais leve, ao contrário (apenas quando a hecatombe universal bate à porta é que ela parece realmente viva, paradoxalmente), enquanto no caso de Ullman parece se restringir ao âmbito de seu papel como esposa e mãe.
Noutros termos, a crise de Ullman, embora profunda é pontual, enquanto a de Justine parece-me um mergulho no niilismo a ponto de ela me cansar.
Não acho que haja desarmonia entre os capítulos, ao contrário, são eles complementares; o que talvez falte é a coesão de outros filmes do diretor e, embora considere "Melancolia" um bom filme, acho-o com flagrantemente aquém do potencial do cineasta.
(Redigido ao som de John Coltrane =)