No Tempo das Diligências
Um tema foi recorrente na filmografia de John Ford, qual seja a
superioridade moral e ética de seres marginalizados pelos ‘cidadãos de bem’ que
compunham a elite da sociedade norte-americana. No Tempo das Diligências (EUA, 1939), dentro deste contexto, ocupa
uma significativa posição dentro do gênero western, graças ao olhar benevolente
que dirige aqueles ditos marginais.
Neste sentido, a trama apresenta, por exemplo:
- o
banqueiro que, não obstante a empáfia com que discursa em nome da moralidade, é
na verdade um ladrão em fuga com o dinheiro aplicado por correntistas em seu
banco;
- a nobre
dama que, obcecada com a possibilidade de reencontrar o marido, é incapaz de se
emocionar com o nascimento da filha a ponto de ignorar a presença desta que,
consequentemente, deixa de receber os carinhos e cuidados típicos de qualquer
mãe.
Na outra ponta, ganham a atenção e identificação do espectador:
- o
foragido da polícia que, além de corajoso e habilidoso ao gatilho, demonstra
notável sede de igualdade na medida em que demanda constantemente um tratamento
igualitário para a outra mulher que integra o grupo de passageiros que numa diligência cruza um perigoso território apache;
- essa
outra mulher é Dallas, uma prostituta que, apesar de todo o desprezo recebido,
não hesita em ajudar de maneira incansável aqueles que precisam, por vezes, de
cuidados específicos.
Essa identificação dos espectadores para com os personagens marginais
é fruto de um processo de controle de ponto de vista daqueles primeiros¹.
Imersa em sua invisibilidade a instância narrativa, por meio de atributos como
enquadramento e sequencialidade dos planos, direciona, estimula o espectador a
tecer determinados juízos de valor sobre os personagens, definindo, assim, o
curso da leitura a ser realizada pelo público.
Ocorre que em se tratando de um filme que, longe de encenar apenas um
jogo de gato e rato entre homem branco e índio, busca com afinco a exposição de
ideias éticas e morais, no que se inclui o debate social advindo da
problemática, porque preconceituosa, relação entre incluídos e excluídos, uma
lacuna se mostra latente na mise-en-scène
de Ford: a questão indígena.
Sim, os marginais recebem as bênçãos do narrador oculto e, por
conseguinte, dos espectadores, mas nessa categoria incluem-se tão somente os próprios
caras-pálidas, ficando, desta feita, relegados a um papel sub-humano os
peles-vermelhas. Há quem entenda que o cineasta “não tenta apresentar os índios como indivíduos; eles são apenas uma
força da natureza”², conclusão, convenhamos, reducionista que tenta
minimizar a indiferença da supracitada instância narrativa perante um grupo situado
num degrau ainda mais abaixo da marginalidade, visto que pertencente a um
contingente indesejado e expelido pelo violento processo de colonização da
terra.
Neste diapasão, por exemplo, Gerônimo, apesar da inconteste liderança
mantida entre os índios, é apenas um nome mítico que não ganha nenhum rosto
determinado. A única apache, vale dizer, que recebe uma, ainda que breve, atenção
individualizada, é a esposa de um mexicano que, na iminência de um ataque de
seus pares, não pensa duas vezes antes de fugir abandonando o marido e roubando
o bem mais precioso que aquele julgava ter. A selvageria de seu comportamento não
é, desse modo, relativizada, mas sim tomada como verdade absoluta, o que além
de refletir a lógica excludente de uma época, acaba hoje por restringir o êxito
crítico do longa-metragem, não obstante sua importância em aspectos narrativos
referentes a manipulação do ponto de vista e técnicos – no que se incluem tomadas
em contra-plongée que inspirariam
Orson Welles quando da filmagem de Cidadão
Kane³-⁴, bem como a empolgante sequência de perseguição
que, graças a um exímio trabalho de montagem, decupagem e de dublês dribla
eventuais restrições tecnológicas do período para entregar ao público uma
aventura em alto estilo.
Daí conclui-se: No Tempo das
Diligências possui inestimado valor para a narratologia fílmica e para o
ressurgimento e sedimentação do faroeste enquanto gênero lucrativo do cinema clássico
hollywoodiano. Todavia, uma vez vinculada ao filme, a brecha indígena infelizmente
despe-o da sensação de completude seja no que tange a exploração de um viés
psicológico referente aos índios seja no que diz respeito a abordagem ideológica
da causa defendida por estes.
Não é de hoje, portanto, que a necessidade de entreter o público
impede que projetos ganhem contornos mais complexos e adultos, afinal, como
sabido, é preciso não só recuperar o dinheiro investido numa produção como também
faturar um lucro que justifique sua realização.
______________________
1.
Sobre o tema Nick Browne detém a autoria de um
trabalho considerado clássico para a teoria do cinema, dada a forma precursora
com que introduziu uma detalhada análise fílmica fundada nos planos vistos
através dos fotogramas. Dito isso, sugere-se a leitura de O Espectador no Texto:
A retórica de No Tempo das Diligências in
RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria
Contemporânea do Cinema. V. II. Documentário e narratividade ficcional. São
Paulo: Senac, 2004.
2.
Edward Buscombe in 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer.
Rio de Janeiro: Sextante, 2008. p. 144.
3.
O próprio Orson Welles assim declarou certa vez
em entrevista: “Sofri
apenas uma vez a influência de alguém: antes de filmar Cidadão Kane, vi quarenta vezes No Tempo das Diligências. Não precisava me
basear no exemplo de alguém que tinha alguma coisa a dizer, mas em alguém que
me mostrasse como dizer o que eu tinha a dizer: para isso, John Ford é perfeito” (FONTE: BAZIN, Andre. Orson Welles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2006. p. 184).
4.
François
Truffaut assim já escreveu: “Orson Welles nunca procurou dissimular o que
assimilara ao assistir a outros filmes, sobretudo No Tempo das Diligências, de John Ford, que diz ter visto diversas
vezes antes de rodar Cidadão Kane. Em No Tempo das
Diligências, John Ford mostrava sistematicamente os tetos todas as vezes
que os personagens deixavam a diligência para entrar num albergue. A bem da
verdade, suponho que John Ford filmava então os tetos para criar um contraste
com os planos gerais de trajeto da diligência, em que o céu ocupava
forçosamente uma grande superfície da tela. A utilização dos tetos em Cidadão Kane
é bem diferente” (FONTE: Welles e Bazin in BAZIN, Andre. Orson Welles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 26).
Direção: John Ford
Produção: John Ford, Walter Wanger.
Roteiro: Dudley Nichols
Elenco: Claire Trevor, John Wayne, Andy Devine, Thomas Mitchell, George
Bancroft, John Carradine.
Fotografia: Bert Glennon
Trilha Sonora: Max Steiner, Gerard Carbonara, Louis Gruenberg, Richard Hageman, W.
Franke Harling, John Leipold
Duração: 100 min.
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