Janela Indiscreta
Influência
Eterna
Ao discorrer sobre Janela Indiscreta (EUA, 1954) Joshua Klein descreve o título como
um “estudo fascinante sobre a obsessão e
o voyeurisno, Janela Indiscreta combina um elenco perfeito, um roteiro perfeito
e principalmente um cenário perfeito para um filme - que é ainda melhor do que
a soma de suas partes”¹. Ante o exposto, vale a pena dissecar o pensamento
citado para entender o porquê de tanto elogios.
- Fascinante estudo sobre a obsessão e o voyeurismo:
Inicialmente cabe dizer que o
sentimento de culpa atravessa todo o longa-metragem seja no que diz respeito ao
comportamento voyeur do fotógrafo Jeffries, interpretado por James Stewart, seja quanto a forma obsessiva com que se empenha a convencer os outros
de que um morador do prédio em frente ao seu assassinara a esposa. Neste
diapasão, o protagonista é, não raro, julgado por espiar os outros bem como
criticado por tecer teorias incriminadoras que não possuem qualquer respaldo
probatório. Assim, tem-se um personagem que parte de uma lógica não cartesiana
e que uma vez não tendo testado nem demonstrado indícios favoráveis a sua linha
de raciocínio, acaba limitado a frágeis suposições sobre a autoria de um
suposto crime², restrição essa que, entretanto, não o impede de convencer
outras pessoas a praticar atos como invasão de domicilio e usurpação de poder
de polícia em favor da comprovação de sua tese³ - aspecto esse em que o diretor
Alfred Hitchcock, graças ao jogo de campo e contracampo arquitetado, torna o
espectador não só cúmplice como também participante dos atos de intromissão do
protagonista na vida dos vizinhos.
- Elenco perfeito:
Mesmo em meio a uma quase total
imobilidade de seu personagem, James Stewart consegue transitar facilmente por
sentimentos como tédio, culpa, aflição, alívio e medo, além de injetar nos
diálogos a ironia tão comum ao humor inglês de Hitchcock. Stewart, aliás, faz
uma ótima parceria com Thelma Ritter que ao seu lado funciona como uma espécie
de voz da consciência pronta para também reforçar o tom cômico da obra. Grace
Kelly, por seu turno, injeta sensualidade em uma atuação elegante e ao mesmo
tempo despojada que combina perfeitamente os elementos exigidos por seu papel.
- Um roteiro excelente e, principalmente, um cenário perfeito:
Quanto ao roteiro, cabe destacar
sua excelência primeiramente pela forma como adaptara o conto original de Cornell Woolrich, acrescentando
muitos personagens antes inexistentes, como alguns dos vizinhos vistos pelos
olhos de Stewart, além da própria socialite vivida por Grace Kelly. A junção
dessas inovações, vale dizer, potencializou o trabalho na medida em que lhe garantiu
uma muito bem dosada e sincronizada mistura de gêneros como drama, suspense,
policial e comédia, sem que o foco jamais fosse ofuscado por historietas coadjuvantes
pertencentes ao ecossistema encenado.
Não fosse o bastante, o script denota um sem número de soluções
visuais que dispensam diálogos face o universo diegético da rotina de um homem
que muitas vezes sozinho não tem com quem compartilhar de imediato aquilo que
vê seus vizinhos fazendo. A intervenção externa aos eventos ocorridos nos
apartamentos dos vizinhos do protagonista é, neste passo, quase nula. Não há
aqui montagem paralela para demarcar fatos acontecidos em locais muito
distantes, eis que a diegese se limita ao espaço do mega cenário montado, o que
explica a absoluta prevalência dos já mencionados plano e contraplano no
trabalho de decupagem.
Dentro deste contexto, no que
concerne a construção da trilha sonora, Peter Bogdanovich chama a atenção para
o fato de que o filme, uma vez intencionalmente voltado a ser uma representação
da realidade, como manda a tradição do cinema clássico, é curiosamente
desprovido de música em sua quase totalidade. Conforme sua ótica: “A única música era a que alguém tocava do
outro lado. Alguém ouvia um disco ou tocava piano. Fora isso, não havia música,
o que na época constituía uma trilha sonora incomum e ousada. Dá uma espécie de
verossimilhança, a noção de que ninguém interfere, de que isto é real. E
Hitchcock estava ciente disso”⁴.
Ainda quanto ao aspecto da
concepção visual determinada a partir do roteiro, cabe frisar que Janela Indiscreta estabelece um nítido
paralelo entre cinema e teatro ao passo em que, por exemplo, firma uma
geometria cenográfica calcada no vértice imaginário do olhar, eis que o
espectador, tal qual como se estivesse num teatro, assiste por meio dos olhos e
da lente fotográfica do personagem principal uma espécie de peça cujo palco
(apartamentos do prédio em frente ao de Jeffries) é separado da plateia por um
fosso tipicamente teatral representado pelo pátio que separa os dois prédios. Tal compreensão fílmica, saliente-se,
tem como origem o raciocínio de Ismail Xavier para quem: “Filme de estúdio, Janela Indiscreta é
ostensivo na estrutura teatral da cenografia que, ao longo do filme, não se
altera, como quando assistimos a uma peça com unidade de lugar”⁵.
Em sentido parecido, Robin Wood,
autor de Hitchcock’s Film Revisited,
observa que: “Jeffries e outras
personagens usam os apartamentos opostos como uma espécie de tela de cinema.
Fazem o que eu acho que a maioria faz quando vê cinema. Identificam-se em parte
com outros, comparam em parte as suas vidas de várias com as vidas de outros,
usam essas vidas para falar das suas próprias vidas de várias formas”⁶.
Como muito já fora adiantado sobre a importância do cenário em Rear Window, a abordagem, por fim, merece
ser complementada pelas palavras, novamente, de Joshua Klein que assim conclui:
“Janela Indiscreta é construído de
forma tão minuciosa quanto seu complexo cenário. Assisti-lo é como observar um
ecossistema vivo, pulsante”⁷.
- Um filme que é ainda melhor do que a soma de suas partes:
Alçado a condição de personagem, o cenário desta obra-prima fora fruto
de um complexo trabalho de engenharia cuja autorização para construção só fora
dada pelo estúdio porque quem capitaneava o projeto era ninguém menos que Alfred
Hitchcock, o exímio contador de histórias, responsável ao término da
pós-produção por juntar com inquestionável homogeneidade todas as partes
citadas e, por conseguinte, tornar o resultado final mais grandioso que
qualquer um dos importantes elementos técnico-narrativos analisados ao longo do
texto.
Por isso tudo, Janela Indiscreta permanece tecnicamente
impecável e invejavelmente eficiente em termos de narratologia. Não à toa, qualquer
filme que se propõe a explorar o tema do voyeurismo – como Peeping Tom, de Michael Powell, e Não Amarás, de Krzysztof Kieslowski – acaba revelando em sua
essência ecos da realização de Hitchock, influência, aliás que deverá continuar
para sempre ocorrendo.
______________________
1.Edward Buscombe
in 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer.
Rio de Janeiro: Sextante, 2008. p. 294.
2.Dentro
deste contexto, sugere-se a leitura de CABRERA, Júlio. Descartes e os
fotógrafos indiscretos (A dúvida e o problema do conhecimento) in O
cinema pensa: uma introdução a filosofia através dos filmes. Rio de
Janeiro: Rocco, 2006. cap. 5, p.
140-158.
3.Tamanha conduta culposa, frise-se, é
espiada no clímax através da “descoberta“ do assassino que, na concepção de
Ismail Xavier, exerce um papel de bode expiatório na medida em que comete um
sacrifício que adiante trará melhorias para a vida de toda uma comunidade, no
que se incluem o protagonista e os vizinhos que individualmente ganham seus
respectivos finais felizes. Dito isso, recomenda-se a leitura de Cinema e
Teatro – A Noção Clássica de Representação e a Teoria do Espetáculo, de
Griffith a Hitchcock in XAVIER,
Ismail (org). O cinema no século. Rio
de Janeiro: Imago, 1996. p. 247-266.
4-6. Entrevista
extraída do documentário Rear Window
Ethics – Remembering and Restoring a Hitchcock Classic.
5.Cinema e
Teatro – A Noção Clássica de Representação e a Teoria do Espetáculo, de
Griffith a Hitchcock in O cinema no
século. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 247-266.
7.Op. Cit. p. 295.
Direção: Alfred Hitchcock
Produção: James C. Katz
Roteiro: John Michael Hayes, baseado no conto ‘It Had to be Murder’ de Cornell
Woolrich
Elenco: James Stewart, Grace Kelly, Wendell Corey, Thelma Ritter, Raymond Burr,
Judith Evelyn, Ross Bagdasarian, Georgine Darcy, Sara Berner, Frank Cady,
Jesslyn Fax, Rand Harper, Irene Winston, Havis Davenport
Fotografia: Robert Burks
Trilha Sonora: Franz Waxman
Duração: 112 min.
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