Bohemian Rhapsody


Is This The Real Life?

Um dos pontos altos de Nasce uma Estrela (EUA, 2018) são os shows que os personagens executam em festivais reais de música, ao passo que tais cenários conferem bem-vinda autenticidade a tomadas nas quais a música pulsa junto com intérpretes e plateia. Tal sensação de veracidade, cabe dizer, faz uma enorme falta em Bohemian Rhapsody (EUA, 2018) haja vista que as reconstituições das apresentações do Queen - apesar da presença em cena de Rami Malek incorporando com perfeição o Freddie Mercury dos palcos - em momento algum soam como algo além de uma encenação, contexto esse em que nem a computação gráfica consegue proporcionar um resultado diferente. Explique-se: quando, por exemplo, eclode o ato mais empolgante do longa-metragem, a participação da banda no Live Aid, o que se vê é um mal-ajambrado processo de virtualização da multidão que supostamente se aglomera perante os músicos, composição visual deficiente essa que teima em incomodar e comprometer uma fração diferenciada do filme que, a despeito dos problemas estético-narrativos apontados, ainda assim se destaca graças, novamente, a entrega de Malek e ao poder que as canções do grupo tem de envolver e de mexer com as emoções dos ouvintes, assunto que Roberto Sadovski comenta nos seguintes termos:

“Malek é um gigante, o filme é apenas ok, mas a música…. Ah, a música! Mesmo com o melodrama que permeia o filme de ponta a ponta, Bohemian Rhapsody decola como um foguete sempre que o Queen sobe no palco [...]. Quando chega o clímax, a histórica performance no LiveAid, já é covardia, impossível não sentir o pulso, a catarse e a energia do quarteto [...].Traduzir esse momento em filme é um dos achados mais geniais de Bohemian Rhapsody!”¹.
Não bastasse tropeçar na reconstrução daquilo que circundava as performances da banda², o histórico da mesma ainda é traçado em um vacilante modo chapa-branca na medida em que:
- o abuso de drogas é comentado en passant como que no intuito de não incomodar parcela do público³;
- as festas nababescas dadas por Mercury são resumidas em uma breve e comportada sequência que não chega sequer perto daquilo de excêntrico que o cantor promovia⁴;
- os companheiros de banda são todos uns boas-praças, sem nenhum ponto fora da curva, que, inclusive, se recusam, enquanto rapazes corretos, a participar dos pecaminosos festejos proporcionados por seu bandleader;
- a arrogância de Mercury é deveras suavizada, daí inexistir qualquer menção as estapafúrdias exigências por ele feitas para se apresentar ao vivo, no que se inclui impedir que pessoas transitassem pelo backstage de shows enquanto por ali ele passava.
Até a sexualidade de Mercury é tratada com um pudor titubeante característico de projetos que almejam ser vistos por toda a família, intenção que, por certo, explica o porquê de pairar no ar certo julgamento moralista quanto a tal tema, afinal, a felicidade do cantor é, via de regra, associada a seus anos de heterossexualidade, ciclo de alegria esse interrompido a partir do instante em que se aceita enquanto homossexual e passa, então, a ser um homem solitário, depressivo como que castigado pela diversidade abraçada.
Dentro deste contexto, o filme que tanto comenta e louva a ousadia inerente as inovações musicais produzidas pelo quarteto, descarta a chance de também ser provocativo, resultado esse que deve ser colocado na conta de produtores e diretores pouco interessados em manter um foco realista perante a memória de alguém que, por certo, jamais se contentaria em ter sua trajetória contada por meio de um roteiro novelesco que, inclusive, altera a cronologia de certos fatos para encaixá-los dentro de uma fórmula. Não à toa, Roberto Sadovski, novamente, comenta: “Bohemian Rhapsody [...] é um pastel de vento. O exterior é uma beleza, dourado e sedutor. Mas o interior oco é revelado logo na primeira mordida.
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1.Novelão, Bohemian Rhapsody traz grandeza em Rami Malek e no legado do Queen. Disponível em: https://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2018/10/31/novelao-bohemian-rhapsody-traz-grandeza-em-rami-malek-e-no-legado-do-queen/. Acesso em 04/11/2018.
2. Neste diapasão, o momento em que Freddie Mercury se surpreende com uma enorme massa ecoando sua música, resulta numa reconstrução pífia dos épicos minutos em que o músico rege o público do Rock in Rio de 1985 durante a execução de Love of My Life, reprodução que, aliás, deveria ser associada, por questão de ordem cronológica, não a apresentação no referido festival e sim ao show realizado pelo grupo no estádio do Morumbi (SP) em 1981, evento apontado como o pontapé inicial de um costume assumido mundo afora: cantar numa só voz coletiva a referida canção para o deleite de Mercury que, como sabido, se calava para ouvir o coro.
3. Com efeito, Thales de Menezes conclui: “No período que pode ser chamado de ‘anos selvagens’ do cantor, com orgias estimuladas por substâncias químicas variadas, o foco do filme é errático, sem aprofundamento. Nada é explícito, e o que é insinuado parece rasteiro, esquálido. Um roteiro um tanto envergonhado” (Cinebiografia de Freddie Mercury do Queen, é novela mexicana eletrizante. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/10/cinebiografia-de-freddie-mercury-do-queen-e-novela-mexicana-eletrizante.shtml. Acesso em 14/112018).
4.  Uma das festas de Mercury entrou para a posteridade sob o nome de “Noite de sábado em Sodoma”. Realizada no Halloween de 1978 no intuito de celebrar o lançamento do álbum “Jazz”, a celebração orçada em £$200.000 (mais de R$5,7 milhões em valores atuais), reza a lenda, contou com: um especialista em arrancar cabeças de galinhas vivas com os dentes, uma mulher que, por um preço próximo de US$100.000, propunha decapitar a si própria com uma motosserra, anões hermafroditas que serviam cocaína em bandejas de prata presas sobre suas cabeças, magos, guerreiros zulus, contorcionistas, engolidores de fogo, encantadores de serpentes, bombeiros, drag queens, strippers, garçons e garçonetes que recebiam gorjetas através de alguma cavidade do corpo, modelos de ambos os sexos que lutavam em enormes banheiras de fígado cru e mulheres samoanas de 150 quilos que fumavam cigarros através de diferentes orifícios. (Fonte: https://www.contragrife.com/blog/queen-a-inacreditavel-noite-de-sabado-em-sodoma/ Acesso em 14/11/2018).
5. Amin Khader trabalhou na produção das três primeiras edições do Rock in Rio e dentre as histórias que conta de tal período costuma relatar que no ano da apresentação do Queen: “Assim que chegou à Cidade do rock, o megastar exigiu que os corredores do camarim estivessem vazios para que ele pudesse passar. ‘Quem são essas pessoas que estão aí?’, perguntou Freddie. ‘São artistas do mesmo gabarito que o seu’, respondeu Amin, se referindo a Ney Matogrosso, Elba Ramalho e Erasmos Carlos. ‘Não são, porque eles me conhecem, e eu não os conheço. Você tem cinco minutos para tirar todos de lá, senão, meus seguranças farão isso!’ ordenou o astro. Inconformados, os artistas nacionais que, a pedido de Amin, deixaram os corredores livres, gritavam ‘Bicha!, bicha!’, durante a passagem de Freddie. ‘O que eles estão falando?’, indagou o artista. ‘Estão te elogiando’, respondeu o amistoso Amin. ‘Como? Se eles estão com cara de ódio!’, disse Freddie, que quebrou todo o camarim, sobrando, é claro, para Amin: ‘Ele me chamou no camarim e perguntou se no Brasil havia furacão. Quando olhei, estava tudo destruído’” (Disponível em: https://extra.globo.com/famosos/produtor-do-backstage-dos-tres-primeiros-rock-in-rio-amin-khader-revela-os-bafoes-que-rolaram-nos-bastidores-do-evento-2653705.html. Acesso em 14/11/2018).
6. Op. Cit.

FICHA TÉCNICA

Direção: Bryan Singer, Dexter Fletcher
Roteiro: Anthony McCarten, Peter Morgan
Produção: Brian May, Bryan Singer, Graham King, Jim Beach, Peter Oberth, Richard Hewitt, Robert De Niro, Roger Taylor
Elenco: Aaron McCusker, Ace Bhatti, Aidan Gillen, Alicia Mencía Castaño, Allen Leech, Ben Hardy, Charlotte Sharland, Dickie Beau, Gwilym Lee, Ian Jareth Williamson, Israel Ruiz, Jess Radomska, Jessie Vinning, Johanna Thea, Joseph Mazzello, Lora Moss, Lucy Boynton, Matthew Fredricks, Matthew Houston, Max Bennett, Michael Cobb, Michelle Duncan, Mike Myers, Rami Malek, Tom Hollander
Fotografia: Newton Thomas Sigel
Trilha Sonora: John Ottman
Montagem: John Ottman
Estreia: 01/11/2018 (Brasil)
Duração: 135 min.

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