O Homem que Virou Suco


Homogeneidade Opressora
Personagem principal de O Homem que Virou Suco (Brasil, 1979) Deraldo é mais um dos inúmeros nordestinos que migraram para são Paulo ao longo dos anos 1970. Amante da poesia, o personagem não consegue garantir o próprio sustento através da arte, o que o leva a assumir trabalhos braçais que além de não o remunerarem adequadamente, desperdiçam o seu talento, circunstância que, entretanto, não reduz sua consciência crítica já que o mesmo demonstra de maneira incansável o seu inconformismo perante a desigualdade social e, sobretudo, ante a forma com que tentam a todo instante encaixá-lo em um padrão no qual as regiões Norte e Nordeste são vistas como uma só passando as pessoas que dali são oriundas a ter um mesmo nome e rosto cujo comportamento há de ser adequado e obediente as normas dispostas pelos seres superiores do sul e sudeste¹.

Nesta toada, Deraldo passa quase toda a duração do filme sendo confundido com José Severino da Silva que a despeito de, segundo a ótica do sulista, ser um nordestino com aparência e nome comuns a qualquer outro, possui sobre si uma peculiaridade: está o mesmo foragido em virtude do cometimento de um assassinato. Trata-se, dentro deste contexto, de  um homem que seduzido pelas falsas promessas do patrão acaba traindo seus colegas de trabalho ao delatar aqueles que se opunham as desfavoráveis condições de labor impostas, ato que lhe acarreta arrependimento que de tão profundo prejudica sua sanidade. Entre Deraldo e José Severino existe, portanto, um abismo de diferenças relacionadas a ética e postura, já que o primeiro dada a fúria com que rechaça aqueles que tentam lhe explorar e padronizar  parece que jamais seria capaz de tomar parte no tipo de conluio do qual o segundo fizera parte, pensamento que, contudo, nenhuma diferença faz eis que para a classe dominante existe apenas uma espécie homogênea de migrante que dadas as tradicionais necessidades experimentadas serve de mão-de-obra barata para a execução do serviço pesado e braçal concernente a efetivação de obras grandiosas responsáveis pela modernização das metrópoles.
Tanto para a classe dominante quanto para o governo militar da época, era interessante manter a alienação da classe operária a fim de que não houvesse resistência capaz de impedir que mais lucros fossem obtidos as custas de menos direitos trabalhistas. Não à toa, figuras rebeldes e questionadoras como Deraldo representavam um perigo a ser extirpado, a ser “Espremido e jogado fora ‘como bagaço de laranja’”, como bem observa Luciano Ramos² que também salienta que a construção do personagem em meio a toada documental aplicada pelo diretor João Batista de Andrade não se dá de maneira hermética ao passo que o protagonista possui em seus atos um humor involuntário que seduz o público deixando este empático perante as inquietudes daquele, tal como escreve o referido crítico:

“Apesar de revoltado contra qualquer tipo de autoridade [Deraldo] dispensa a violência física e prefere se manifestar por meio da palavra, xingando ou criando versos satíricos e frases de espírito. [... Tal] rebeldia se manifesta de modo incessante, porém jamais descamba em niilismo ou em explosões estéreis e autodestrutivas”³.

Deraldo, apesar de frequentemente transformado em suco, não para de  caminhar e de tentar fincar seu lugar na selva urbana que adotara como lar – afinal, resta claro que voltar a seu lugar de origem por certo seria algo ainda pior – daí porque entre gritos e solavancos de revolta vai encontrando modos de se encaixar, o que por vezes significa ceder as regras daqueles que se julgam donos da razão, conclusão que ratifica o argumento de Luciano Ramos abaixo transcrito:

“[Deraldo] Percebe que a saída não se encontra na marginalidade e nem na integração obediente à regras sociais consagradas. Não será mendigo e nem operário-padrão, porque percebe que, para sobreviver como poeta, bastava tirar licença de camelô na Prefeitura e inventar uma história que agradasse ao público. Em outras palavras, resolve lutar pela vida e pela individualidade usando as armas que o próprio sistema oferece, movendo-se nas brechas que ele deixa abertas e ocupando os espaços disponíveis. Conformismo e anarquismo às vezes assumem o mesmo rosto”⁴.

Por fim, cabe destacar que em meio a mensagens levadas para a tela de forma bastante explícita, O Homem que Virou Suco também dispõe de outro punhado de reflexões deixadas nas entrelinhas, tais como:
- a cena em que Deraldo (a despeito das muitas ocasiões em que deixa nítido o quanto se vê em pé de igualdade com relação aos membros de categorias econômicas acima da sua) fraqueja e assume o comportamento de gado preso no curral, momento que embora breve ilustra o estado de graça em que se encontrava José Dumont ao interpretar tal papel;
- a sequência em que o mesmo Deraldo procura lugar para dormir entre mendigos enquanto cantarola “faça de conta que pra você não sou ninguém” verso de A Última Canção (Paulo Sérgio) que permite fazer alusão a um Brasil que dá as costas para parte de seus filhos ao fingir que os mesmos não existem.
Aliás, toda a trilha musical do longa-metragem mostra-se voltada a fortalecer o discurso político do enredo, vide as composições de Vital Farias precisamente inseridas, o que denota um trabalho de reflexão conjunta que engrandece a obra e a torna mais rica em detalhes e ideias a serem descobertas e analisadas.
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1. Neste diapasão, Kleber Mendonça Filho assim escreve sobre o protagonista: “Esse poeta popular paraibano é dotado de um afiado senso crítico que testa São Paulo tanto quanto São Paulo o testa. Sua dignidade vem com uma raiva espontânea que manda às favas hierarquias estabelecidas de classe e de poder” (Filme sobre preconceito no Brasil continua atual. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0811200917.htm. Acesso em 10/05/2020). Talvez inspirado por O Homem que Virou Suco o cineasta retomou em Bacurau a  discussão sobre a pretensa superioridade de uns brasileiros sobre outros vide a sequência em que um casal clama por tal reconhecimento perante um grupo de estrangeiros que deles faz chacota).
2. SILVA, Paulo Henrique (org.). 100 Melhores Filmes Brasileiros. Belo Horizonte, MG: Letramento, 2016. p. 281.
3. Op. Cit. p.283.
4. Op. Cit. p. 284.

FICHA TÉCNICA

Direção e Roteiro: João Batista de Andrade
Produção: Wagner de Carvalho
Elenco: Aldo Bueno, Célia Maracajá, Denoy de Oliveira, José Dumont, Rafael de Carvalho, Renato Master, Ruth Escobar, Ruthinéa de Moraes
Fotografia: Aloysio Raulino
Trilha Sonora: Vital Farias
Duração: 95 min.

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