Rio, Zona Norte

Resgate Já

Produzido em 1957, Rio, Zona Norte é o segundo longa-metragem de Nelson Pereira dos Santos. Inspirado na vida e obra do sambista Zé Ketti, o roteiro explora as reminiscências de Espírito da Luz Soares, um talentoso e humilde compositor de sambas de salão que vive na periferia do Rio de Janeiro lutando dia após dia para ter condições de vida mais dignas bem como para fazer com que suas canções alcancem gravadoras e rádios.
Para escrever a história de Espírito, o cineasta morou seis meses em Bento Ribeiro com seu compadre Zé Ketti como forma de conhecer a fundo o cotidiano do músico. Na ocasião o cineasta levantou todas as músicas não editadas do sambista, afinal, o diretor percebeu que o sambista “compunha no ônibus, em papel de padaria, cadernos, etc., impressionado com o fato de que, não tendo como registrá-las ficava muito pouco do que ele produzia”¹ – aspecto esse que, como será melhor abordado adiante, fez surgir em Nelson Pereira a intenção de analisar a necessidade de resgate da cultura popular, até então repudiada pelas elites intelectual e burguesa.
Quando lançado, o filme, apesar de trazer em seu elenco nomes como os de Grande Otelo e da cantora Ângela Maria, resultara num fracasso de público e crítica². Neste sentido, a proposta de apresentação de um Rio de Janeiro pobre, onde o mar cede espaço as favelas, onde os segregados, oprimidos e explorados restam abandonados à própria sorte, onde o mito desenvolvimentista do governo Kubitschek caía por terra, consistira num ímpeto extremo de ousadia por parte de Nelson Pereira dos Santos, uma vez que não é permitido esquecer que o público da época era vítima de uma atividade cinematográfica alienante e dominante até então: a chanchada.
Sobre o tema, vale citar o seguinte pensamento de Mariarosaria Fabris:
“O grande público, acostumado a ‘suave crítica dos costumes’ das chanchadas, em que a integração das classes e a ascensão social eram a tônica, não se reconhecia nesses filmes que lhe devolviam a imagem de um país subdesenvolvido de grandes contrastes sociais”³.
A novidade apresentada em Rio, Quarenta Graus (1955), filme de estréia do diretor, consistia numa abordagem direta e realista da ambiência popular. Isto posto, o cinema feito nas ruas e nas favelas, no qual o personagem central era a própria cidade do Rio de Janeiro, dava lugar, em Rio Zona Norte, ao recorte melodramático no tratamento da intriga, aos recursos de roteiro e montagem típicos do cinema convencional hollywoodiano (como o uso do flash-back). Os famosos pressupostos neo-realistas, sempre proclamados a propósito de Rio 40 Graus, não encontravam em Rio Zona Norte uma tradução à altura, razão pela qual o segundo longa-metragem de Nelson Pereira dos Santos decepcionou os que enxergaram em Rio 40 Graus o início de um cinema realista brasileiro talvez comparável à escola neo-realista italiana.
Dentro deste contexto, antes de qualquer estudo sobre o tema é preciso ter em mente o seguinte pensamento de Nelson Pereira dos Santos:
“Sem o neorrealismo italiano, não teríamos começado e acredito que nenhum país de economia débil... Porque a grande lição do neorrealismo foi a de produzir filmes sem ter que contar com todo o aparato material, econômico, da grande indústria que dominava na época, especialmente a norte-americana... No Brasil, procuramos aprender imediatamente essa lição: ou seja, fazer cinema sem estúdio, com ‘uma câmera na mão e uma ideia na cabeça’, voltado para nossa realidade”⁴.
Considerando, assim, que a influência neorrealista é inegável em Rio, Zona Norte pelo menos no que tange a forma de viabilização do projeto, quanto ao conteúdo há que primeiramente esclarecer-se que:
- enquanto em Rio, Quarenta Grausa câmara narra e expõe com ardor os dramas, as misérias e a contradição da grande cidade”⁵ numa ordem aleatória, em Rio Zona Norte o que se vê é uma estrutura narrativa clássica voltada a “aprofundar as relações de causa e efeito entre explorados e exploradores”⁶, daí porque o rigor perante o estilo neorrealista perde espaço neste último “para a impregnação que a realidade brasileira provocava, e o resultado formal é menos transparente estilisticamente e, portanto, mais pessoal” ⁷;
Opinando em tal discussão, Luís Alberto Rocha Melo esclarece:
“O que era considerado oscilação de estilo pode ser visto então como estratégia típica de uma obra que percebia uma guinada nos estatutos de roteiro e de mise-en-scène no cinema brasileiro. Não só acusava tal guinada como efetivamente a assumia. Por esta razão, verifica-se o uso de procedimentos de melodrama e de chanchada e, ao mesmo tempo, a busca pelo realismo em certos momentos da narrativa” ⁸.
Ante o exposto, é possível concluir que Rio, Zona Norte é uma obra influenciada, mas não limitada, pelo viés neorrealista – daí se inferir que, a época do lançamento, as diversas críticas negativas que lhe foram dirigidas restavam equivocadas quanto a essência da obra, afinal, sua abordagem ultrapassa a temática social presente nos exemplos italianos, tocando, ainda, em assuntos como o resgate da cultura popular e o papel da elite intelectual enquanto intermediadora do diálogo entre as culturas erudita e de massa⁹.
Embora não deva ser compreendida como uma obra neorrealista pura, Rio, Zona Norte – assim como Rio, Quarenta Graus – possui inquestionáveis pontos em comum com o estilo italiano, quais sejam:
  • a falta de diálogo entre a obra e o povo, cujos problemas sociais são retratados na tela;
  • a indicação de um novo caminho para o cinema nacional (qual seja a prática cinematográfica independente que no caso brasileiro culminaria no Cinema Novo¹⁰).
Desta feita, Rio, Zona Norte constitui o típico exemplo de filme que, por não entregar à crítica e ao público o que ambos esperavam assistir, não fora devidamente compreendido em seu tempo. Por isso, tal como os sambas do compositor, faz-se mister resgatar do esquecimento este importante trabalho da cinematografia nacional.
_____________________
1.   FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos. Um Olhar Neo-realista? São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.. p. 153.
2.  Graças ao insucesso comercial do filme, somado ao também fracasso da produção de O Grande Momento (1958) – primeiro filme de Roberto Santos – Nelson Pereira dos Santos ficou atolado em dívidas, daí ter sido obrigado a adiar o projeto que fecharia a trilogia carioca, qual seja Rio, Zona Sul, um drama noturno que se passaria nas boates de Copacabana.
3.   Op.Cit. p.201.
4.   Op. Cit. p. 202.
5.   ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. p. 86-7.
6.   FABRIS, Mariarosaria. Op. Cit. p. 192.
7.   NEVES,David E. ‘Um Filme Esquecido: Rio Zona Norte’. Filme Cultura . Rio de Janeiro. 1978. p. 92.
8.   Rio, Zona Norte. http://www.contracampo.com.br/80/riozonanorte.htm. Acesso em 15.08.11.
9.  Neste passo, o protagonista - brilhantemente interpretado por Grande Otelo - representa o trabalhador explorado, o compositor que obrigado pela necessidade e sem acesso aos meios de produção, acaba permitindo que seus sambas sejam indevidamente apropriados por profissionais do meio fonográfico. A partir deste exemplo, Nelson Pereira dos Santos sugere que a cultura popular carece de integração com a alta cultura, como forma não só de se manter viva como também de ser aceita isenta de preconceitos
10. Glauber Rocha e Cacá Diegues estão entre aqueles que decidiram ser cineastas a partir do impacto causado pelos trabalhos de Nelson Pereira dos Santos.

COTAÇÃO - ۞۞۞۞

Ficha Técnica
Direção e Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Elenco:Grande Otelo (Espírito da Luz Soares)Jece Valadão (Maurício)Paulo Goulart (Moacir)Malu Maia (Adelaide)Zé Keti (Alaor Costa)Ângela Maria, Haroldo de Oliveira (Lourival)
Duração: 82 min.

Comentários

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  2. Tive a oportunidade de assistir ao filme hoje. O sucesso que não obteve na época em que fora lançado deve-se à imaturidade do espírito humano. Ainda temos que caminhar muito em termos de sensibilidade, mas hoje os indivíduos já conseguem perceber a simbologia de uma obra. Hoje, percebemos a verossimilhança contida nas artes. Desse modo, podemos perceber que Rio, Zona Norte é uma obra que, através do percurso de um indivíduo, consegue retratar a realidade de muitos em determinada época.

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